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# 4


A Livraria Buchhölz ficava na Rua Duque de Palmela, uma paralela à Av. da Liberdade, a meio caminho entre o Largo do Rato e a Praça Marquês de Pombal. Não estava na rota das multidões, nunca esteve, mas era um espaço emblemático da cidade. Especialmente para quem tinha a paixão dos livros e das coisas de ler e folhear. E da música, também. Na cave havia um pequeno paraíso, vocacionado para o jazz, ópera, música clássica e erudita. Era lá que, na década de 80, princípios de 90, ainda se iam encontrando algumas pérolas de world music. Antes da Fnac e das encomendas online, via Amazon e afins.

Tinha uma vidraça ampla a deitar para a calçada que a copa frondosa das árvores, ainda hoje (uma raridade cada vez maior em Lisboa!), abraça de um extremo ao outro, deixando-a sempre sob uma abóbada de sombra, deliciosamente refrescante durante o Verão, sorumbática e misteriosa no Inverno. Por dentro era toda em madeira, com um lance que subia e outro que descia ao piso inferior. Lá em cima 'era mais' poesia e edições estrangeiras, cá em baixo 'era mais' música e uma ou outra exposição, porque também funcionava como galeria de arte sem periodicidade certa. Ramificava por uma espécie de varandins e sacadas, formando nichos que correspondiam também a géneros e outras preciosidades, embora a lógica e a organização não imperassem em redor.

O que eu mais gostava – à parte aquele odor a cera, pó e sebo, e à vista inteira das ramagens dos plátanos da rua – era justamente do absoluto caos reinante, das pilhas mal equilibradas dos livros, da insólita desordem das prateleiras que não se percebia bem como explicar, até porque nunca tinha muita gente. Mas aquela coisa remexida e atabalhoada dava à tarefa de buscar um volume um prazer de quimera especial. Na época os computadores e as bases de dados eram uma miragem com pouco uso e nenhuma aplicação, por isso, ou bem que a memória dos funcionários era suficientemente arguta e nos podia valer de alguma coisa, ou ficava-se entregue à persistência da peleja. Conhecer bem a livraria era uma vantagem que sempre vinha em auxílio dos que tinham o hábito de por lá "perder" muitas horas. Isso dava-nos uma espécie de estatuto auto-suficiente que, se por um lado irritava os funcionários, por outro lhes garantia mais uns momentos de afável tédio. Diga-se de passagem, o atendimento por lá nunca primou pela hospitalidade. Bem pelo contrário. Eram pessoas preparadas mas um tanto ou quanto empertigadas, que faziam o favor de nos responder se acaso solicitávamos alguma ajuda.

A Buchholz era um dos lugares de cumplicidade que mantinha com a minha amiga Bárbara. Servia-nos para tudo: para procurar o que precisávamos e o que ainda nem sequer nos tinha ocorrido, para passar horas e horas nos meses de Agosto escaldantes em que às vezes tínhamos que nos retardar em Lisboa, para garimpar livros, para fazer escutas de discos, para ter conversas mais privadas e recatas longe da inoportuna presença dos outros, ou até mesmo para combinar um ponto de encontro rápido. "estás onde?", "onde é que estás?", "então como fazemos?", "onde nos encontramos?"... Olha, nos livros! E era quase sempre assim. Porque não era preciso mais nada, na verdade. Bastava dizer "nos livros" e sabíamos automaticamente onde era. Porque "os livros" era ali.

Como eu contava, não era – como creio que nunca foi – um lugar de muita gente. Para dizer a verdade, três pessoas lá dentro equivalia a uma enchente raramente por lá vista.Na grande maioria, as edições eram estrangeiras e os preços de capa costumavam ser, por norma, muito acima da média. Nessa época ainda não havia Plano Nacional de Leitura. Como também não haviam Margaridas Rebelo Pinto, Paulos Coelho ou Dan Browns, e todos esses autores que tiveram o condão de massificar os hábitos de leitura, enchendo escaparates, das áreas de serviço das auto-estradas aos corredores de hipermercado, seduzindo devoradores de best-sellers de norte a sul do País, mais que não seja de Julho a Setembro e em qualquer toalha de praia que se preze. O 25 de Abril ainda mal tinha feito 15 anos e os efeitos da política de Salazar e de décadas de ditadura, que deixaram os cofres cheios de ouro e o país com uma das maiores percentagens de analfabetos da Europa, fazia-se ainda sentir de sobremaneira.


A Buchholz também era conhecida por 'a livraria alemã', em parte por ter muitos livros da língua, especialmente de poetas e filósofos, mas também porque por causa da nacionalidade do dono, Karl Buchholz. Era amigo do meu avô Álvaro. Conheceram-se um de cada lado do balcão, ainda nas instalações da Av. da Liberdade. Justamente porque entrava pouca gente, havia sossego e puderam começar a conversar. Tinham os dois «azar ao Hitler», partilhavam a convicção de que a liberdade, o pensamento e o humanismo não se esgotava em França e a mesma admiração obsessiva por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Também gostavam ambos de caminhar a pé, em vez de apanhar o eléctrico ou mandar parar um táxi. Suponho que às horas de conversa fiada entre a madeira encerada do balcão, ou pelas poltronas iluminadas por candeeiros de pé alto polvilhadas pelos recantos, somaram muitos quarteirões calcorreados em prosas de fim de tarde.

Do que me recordo, diria que tinham ambos uma intrigante capacidade de ficar horas diante dos mesmos mapas, enquanto eu deslizava pelos corrimãos polidos. Foi com o meu avô e na Buchhölz que aprendi que há línguas que colocam tremas sobre as vogais e que nem todos os alemães queimam judeus. Há uns que discordam e vêm abrir livrarias para Portugal, mesmo que por lá se leia pouco e só entrem duas ou três pessoas pela porta, num dia inteiro de comércio. Foi também com ele e ali que percebi que podem haver fileiras seguidas de livros de viagem e que a isso se chamam secções. Com o tempo haveria de preferir a Ferrin, na Nova do Almada, ao Chiado, porque me seduziam mais os mares e os barcos, muito embora o avô tivesse ganho certa aversão às caravelas e, por essa altura, já fosse mais adepto dos ares e das asas com que se podem e devem voá-los.
Com os anos, herr Karl deixou de estar ao balcão. No lugar dele ficaram primeiro umas senhoras de solitário no dedo e perfume francês a desprender-se do lenço de seda enrolado ao pescoço austero, juntamente com uns homenzinhos emproados que faziam 'psiuu' mal as vozes se tornavam demasiado audíveis e que nos fulminavam com o olhar, a mim e à minha amiga Bárbara, a cada vez que nos dava para rir. No final dos anos 80, misturaram-se-lhes umas poucas raparigas magricelas, de saias compridas e óculos a esconder o olhar soturno e olheirento, recrutadas à nata que então frequentava a Faculdade de Letras, durante o dia, e começava a tornar famosas as tasquinhas do Bairro Alto, durante a noite.

Com o fim do milénio apareceram as primeiras grandes livrarias, abertas à noite e ao fim-de-semana. Os supermercados passaram a vender livros a metade do preço, além de fraldas, packs de coca-cola, adubos de jardinagem, texteis para o lar, baguettes estaladiças e comida take-away. Passou a cheirar mais a pó e menos a cera dentro do nº 4 da Duque de Palmela. Três pessoas la dentro, mais do que uma multidão, passou a constituir cenário cada vez mais raro. Ciosa e egoista de um espaço que, acreditava, perduraria nos tempos tão secular quanto Lisboa, eu não me importava com nada disso. Bem pelo, contrário, considerava a circunstância uma verdadeira benção dos céus, por oposição às avalanches da Fnac e às filas intermináveis nas caixas, sobretudo rente ao Natal. Não me ocorreu, portanto, o óbvio: que o lucro era cada vez mais exíguo e só poderia dar no que deu: declaração de insolvência num certo Janeiro frio, liquidação ao desbarato do stock em loja pela Primavera e, finalmente, portas fechadas de vez e para todo o sempre, passadas poucas semanas.

Aconteceu a 23 de Abril do ano passado. Porquê nesse dia? Ninguém sabe, nem interessa. Todos os dias são igualmente bons para se nascer e se morrer e, no caso, 23 de Abril foi a data emblemática para por termo a um estado moribundo que não conseguiu continuar a empurrar a morte anunciada mais para diante.

Pelo meio ainda houve uma tentativa de arranque e re-arranque num outro espaço, no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, ao Chiado. O Zé Mário foi até lá e até fez algumas fotografias. Eu não tive coragem, apesar de ouvir dizer que o espaço era lindo. E ainda bem que não fui porque não adiantou de grande coisa. A verdade é que logo de seguida se começou a questionar o apoio que a Fundação Agostinho Fernandes tentou dar à livraria. Prevaleceram os credores, a Buchhölz foi mesmo a leilão e ao menos eu guardei-a para sempre como era no lugar que lhe pertencia, sem outra arrumação a sobrepor-se à memória da desordem algo caótica, tão característica do nº 4 da Duque de Palmela.


Quando a livraria fechou foi, confesso, como se me tivessem arrasado um lugar sagrado da adolescência, como se me tivessem expropriado de um dos redutos mais plenos de significado à memória que tinha de mim e da cidade em mim.
Não voltei a visitá-la. Às vezes ocorria-me que devia deitar-lhe um último olhar, fotografá-la com uma intencionalidade mais afiada na retina, de modo a guardá-la cá dentro o mais nitidamente que pudesse. Mas nunca fui capaz. Muito menos a pretexto de todos os livros terem entrado em liquidação total. Sabia de cor algumas raridades que por lá sempre namorara, mas a ideia de as trazer para casa ao preço da pechincha parecia-me de uma ignomínia sem igual. Eu ouvia as pessoas, falarem, comentarem, combinarem, mas tudo aquilo me soava-me assim como um plano macabro de uma horda sem pudor que saltitava, esfregando as mãos e afilando a gula, por cima de um corpo ainda morno, acabado de tombar no último assalto, em busca de despojos de valor.
Uma idiotice, diziam-me. Pode ser que sim. Seja como for. Em vez disso, resolvi fechar os olhos, assobiei para o lado para ver se afastava a tristeza da ocasião e fui afogar a mágoa e o ressentimento numa mesa da Versailles, em nome dos bons velhos tempo, pesada, deprimida e cinzenta, a perguntar-me quando chegaria também o dia em que não voltaria a poder mordiscar os melhores croquetes de Lisboa, a chorar antes da hora a morte por vir e que há-de vir (talvez venha... ninguém sabe!... nunca ninguém sabe, nem pode ter certeza!) de todos os lugares da cidade a que chamo meus.

Pode parecer ridículo, mas desde então passei a evitar aquela zona da cidade, a mesma que durante anos fora um percurso recursivo dos meus dias. Apeteceu-me ligar à Bárbara, que por essa altura já havia tomado o rumo de Bruxelas e insistia em se perder no mundo sem pré-aviso, certa, absolutamente certa, de que ninguém mais me poderia perceber naquela hora pungente, por mais que jurasse amar as letras e a literatura, amar Lisboa e os redutos históricos que ela albergou um dia. Ao mesmo tempo foi um alívio não saber como lhe chegar porque dispensava bem o papel de mensageiro fúnebre de um lugar que nos tinha sido tão emblemático.

Hoje, porém, ao saber que a Livraria Buchholz voltou a abrir portas com uma placa onde também se lê Leya, confesso que a alegria se mistura com um certo receio. Vou angariar coragem para voltar a fazer o caminho da Duque de Palmela e ver com os meus próprios olhos se é mesmo verdade, se a minha livraria foi realmente resgatada à morte em agonia daquele último 23 de Abril, ou se é afinal um espaço outro, esse que abriu portas em seu nome e lugar.

E se acaso for, se por obra de algum improvável milagre der com a minha Buchhölz, talvez então ligue à Bárbara... E entre Bruxelas, a Floresta Verde e os confins de Mundo por onde as nossas vidas nos trazem, aconteça novamente de nos dizermos quando tivermos que combinar um ponto de encontro: Onde?... nos livros! Encontramos-nos nos livros.


* fotografias sem data, sabendo-se apenas que foram tiradas pelo Estúdio Mário Novais que funcionou entre 1933 e 1983. Observando com atenção, e até pelo nº de porta, estou quase certa que as duas últimas são das primeiras instalações, ainda na Av. da Liberdade, uma vez que só depois a livraria se mudou para o nº 4 da Duque de Palmela.
Crédito:Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian.

Posted by por AMC on 23:34. Filed under , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response