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Matilde Rosa Araújo: 1921-2010

foto: Miguel Madeira

A escritora, poetisa e professora Matilde Rosa Araújo morreu hoje de madrugada, na sua casa, em Lisboa, aos 89 anos, disse à agência Lusa fonte da família. De acordo com a Editorial Caminho o corpo de Matilde Rosa Araújo será velado hoje na sede da Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa.
Um pouco sobre a autora de O Sol e o Menino dos Pés Frios – um clássico da literatura infantil portuguesa que há décadas e gerações pontua os manuais escolares do ensino primário – a que somo três entrevistas para reler na íntegra, clicando no link abaixo para expansão do texto.




 foto: Pedro Velez

Nascida em Lisboa a 20 de Junho de 1921, numa quinta dos avós em Benfica, Matilde Rosa Araújo licenciou-se, em 1945, em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, tendo feito uma tese sobre jornalismo. Depois, foi professora do ensino técnico profissional em várias cidades do país, tendo ficado efectiva no Porto. Foi também professora do primeiro curso de Literatura para a Infância, na Escola do Magistério Primário de Lisboa. Enquanto estudante, foi aluna de Jacinto do Prado Coelho e Vitorino Nemésio e colega de Sebastião da Gama, Luísa Dacosta, David Mourão-Ferreira e Urbano Tavares Rodrigues.
Autora de livros de contos e poesia para adultos e de mais de duas dezenas de livros de contos e poesia para crianças - como "O Sol e o Menino dos Pés Frios", "História de uma Flor" e "O Reino das Sete Pontas" - dedicou-se intensamente à defesa dos direitos das crianças através da publicação de livros e de intervenções em organismos com actividade nesta área, como a UNICEF em Portugal.

Três eixos da infância

Nos seus livros, a autora centrou-se sempre em três grandes eixos de orientação: a infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto. Em 2004, quando recebeu o Prémio de Carreira da SPA, Matilde Rosa Araújo afirmou que "os jovens lhe ensinaram uma espécie de luz da vida", porque "o seu olhar é de uma verdade intensa e absoluta". Entre os seus livros mais importantes para a infância contam-se "Os direitos das crianças", "O palhaço verde" e "O livro da Tila" - nome pelo qual era conhecida entre os amigos.
Ávida pelos jornais, Matilde Rosa Araújo foi colaboradora da imprensa nacional e regional, como “A Capital”, “O Comércio do Porto”, “República”, “Diário de Lisboa”, “Diário de Notícias” e “Jornal do Fundão” e nas revistas “Távola Redonda”, “Graal”, “Árvore”, “Vértice”, “Seara Nova” e “Colóquio/Letras”.
Desde cedo preocupada com os direitos das crianças, tornou-se sócia fundadora do Comité Português da Unicef e do Instituto de Apoio à Criança. Escreveu váias vezes sobre o interesse da infância na educação e na criação literária para adultos e sobre a utilidade da literatura infanto-juvenil na formação dos mais novos.
Apesar da sua actividade em diferentes campos, foi sobretudo como escritora que Matilde Rosa Araújo se tornou mais conhecida, dado ter desenvolvido intensa actividade literária para o público adulto e infanto-juvenil, obtendo nesta área diversos galardões e tendo vários volumes publicados no estrangeiro.

Estreia em 1943

A sua estreia na literatura teve lugar em 1943 com "A Garrana", uma história sobre a eutanásia com a qual venceu o concurso "Procura-se um Novelista", do jornal “O Século”, em cujo júri de encontrava Aquilino Ribeiro. Para o público adulto escreveu também "Estrada Sem Nome", obra galardoada num concurso de contos da Faculdade de Letras, "Praia Nova", "O Chão e as Estrelas" e "Voz Nua".
Na literatura para crianças, o primeiro título publicado foi "O Livro da Tila" (1957) - escrito nas viagens de comboio entre Lisboa e Portalegre, onde leccionava, e cujos poemas foram musicados por Lopes Graça. Seguiram-se "O Palhaço Verde", "História de um Rapaz", "O Sol e o Menino dos Pés Frios", "O Reino das Sete Pontas", "História de uma Flor", "O Gato Dourado", "As Botas de Meu Pai", "As Fadas Verdes" e "Segredos e Brincadeiras" e os mais recentes "A saquinha da flor" e "Lucilina e Antenor", entre cerca de 40 títulos. Com ela colaboraram várias gerações de ilustradores portugueses, de Maria Keil a Gémeo Luís e a João Fazenda.
Em 2009, foi publicada a obra "Matilde Rosa Araújo - um olhar de menina", uma biografia romanceada da escritora com texto de Adélia Carvalho e ilustração de Marta Madureira. Membro da Sociedade Portuguesa de Escritores (actual APE), Matilde Rosa Araújo ocupava um cargo directivo quando, em 1965, a instituição premiou o angolano José Luandino Vieira, então preso no Tarrafal, o que levou a PIDE a invadir as instalações e a demitir a direcção.

Muitos prémios e uma condecoração

O Grande Prémio de Literatura para Criança da Fundação Calouste Gulbenkian (1980), que lhe foi atribuído ex-aequo com Ricardo Alberty, foi um dos primeiros entre os muitos que a sua obra literária viria a conquistar. Em 1991, recebeu o Prémio para o Melhor Livro Estrangeiro da Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo, Brasil, por "O Palhaço Verde", e cinco anos depois viu a obra de poesia "Fadas Verdes" ser distinguida com o prémio Gulbenkian para o melhor livro para a infância publicado no biénio 1994-1995. Já em 1994, Matilde Rosa Araújo fora nomeada pela secção portuguesa do IBBY (Internacional Board on Books for Young People) para a edição de 1994 do Prémio Andersen, considerado o Nobel da Literatura para a Infância.
Em 2003, a escritora foi ainda condecorada, a 8 de Março, Dia da Mulher, pelo Presidente Jorge Sampaio, e em Novembro a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) decidiu, por unanimidade, agraciá-la com o Prémio Carreira (entregue em Maio de 2004), pela sua "obra de particular relevância no domínio da literatura infanto-juvenil". "É uma generosidade muito grande por uma carreira que me deu mais a mim do que eu dei a ela", disse a escritora na altura em que recebeu o prémio da SPA.
Matilde Rosa Araújo - que dizia conhecer dezenas de estabelecimentos de ensino do continente e ilhas - mantém-se viva através da Escola Básica 2,3 de São Domingos de Rana e da Biblioteca Municipal de Alcabideche, em Cascais, que foram baptizadas com o seu nome, tal como sucedeu a um prémio revelação na literatura infantil e juvenil instituído pela autarquia daquela vila em 1998.


via Agência Lusa

Cf. notícia em O Público, Diário de Notícias, Rádio Renascença, Diário Digital, Jornal de Notícias
e Correio da Manhã.


O gosto de viver devagar

por Fernando Dacosta 

Viver devagar é, para alguns, uma forma superior de viver. Uma postura de sabedoria, de apaziguamento. O futuro vai, segundo eles, devolver os valores da lentidão e da sobriedade a um mundo ferido pela pressa, pelo sucesso, pela competição, pelo efémero; a uma natureza devastada pela poluição, pelo desperdício, pelo consumismo, pelo produtivismo. Vozes emergem já, em crescendo, nesse sentido. A de Matilde Rosa Araújo, poetisa, professora, escritora (acaba de lançar o livro “As Fadas Verdes”), figura angular na vida cívica dos últimos decénios, é uma delas.
“Gosto de viver devagar. De saborear o tempo, o fluir vagaroso do tempo nas pequenas coisas, nos pequenos gestos”, diz. “Houve uma altura da minha vida em que não punha sequer data nas cartas, nos textos que escrevia, como se ele não existisse. Aliás, a época do ter, ter pressa, ter bens, ter poder, vai passar. Tudo cansa. As pessoas vão querer outras coisas, outros valores, vão recuperar o ser. Está a surgir uma espécie de fome do solidário, do espiritual, do humano, do afectivo. As pessoas não aguentam o vazio. O vazio fá-las sentir pobres. Há muita pobreza e muito exibicionismo de riqueza à nossa volta, muita barraca, muito pedinte, muito abandonado.”
Ímpar na dignidade e na discrição, Matilde Rosa Araújo, nascida em Lisboa há 73 anos, tornou-se uma referência na história do ensino e da criação literária infantil deste século.
“O Livro da Tila” e “Cantar da Tila” (crianças), “A Garrena”, “Estado sem Nome” e “Praia Nova” (adultos), “Voz Nua” (poesia) são-lhe, entre outras, obras marcantes.
Formadora de professores e alunos, despertou várias gerações para os valores da modernidade artística e literária (“Presença” , “Orfeu”), da ética, da democracia, da solidariedade, da liberdade.
Sem ilusões nem desilusões excessivas — nos outros e em si, nas ideias e nos sentimentos —, atravessou a vida acrescentando-a, acrescentando-se sempre. Hoje é um grande mulher silenciosa, de olhares, de ironias ondeantes e apaziguadas.

Tem sempre paciência para as pessoas?
Tenho. [Ri.] Elas é que podem não ter sempre paciência para mim. Às vezes chegam a ser menos amáveis...

Estão a perder a amabilidade?
Os adultos sim, não as crianças. Talvez por uma questão de defesa, de pouca disponibilidade, de impaciência. Esquecem com facilidade que problemas sempre houve, problemas de toda a ordem, de sentido de vida, de afectividade, de afirmação, de insegurança.

Hoje esses problemas são maiores?
Não sei. As pessoas estão é mais conscientes deles. Isso torna-as interiormente mais vulneráveis, mais crispadas. Sabem mais o que deviam ter e não têm. Não por ambição, mas por sentido de justiça. Hoje há mais consciência das injustiças do que havia no passado.

Apesar de elas serem, no passado, maiores?
Sim. Antes havia nas camadas populares mais conformismo.

Quando pensava no futuro, pensava que era este o futuro que ia ter?
Eu tinha uma ideia de futuro como o de uma época de entendimento, de equilíbrio, de alguma felicidade.

O que era alguma felicidade?
Era as pessoas poderem ser aquilo que são. Aquilo que podem ser, dentro dos seus sonhos, das suas generosidades.

Vê muitos sonhos, muitas generosidades à sua volta?
Vejo, tenho visto mesmo muito altruísmo. Chego a pensar: que sorte tive por ter vivido este tempo, já tão longo, que me coube. Que sorte tive por haver conhecido as pessoas que conheci. Pessoas que sentiram pela vida, e pelos outros, muito, muito amor.

Caso de...
Caso de uma Maria Lamas, de uma Irene Lisboa, de um Agostinho da Silva, de um Gomes Ferreira, de um Ferreira de Castro, de um Assis Esperança, de um Cochofel, de uma Vergínia Lopes de Mendonça, de um Manuel da Fonseca, de um Sidónio Muralha, de um Ruy Cinatti, de tantos, oh, tantos outros!

Solidão, tem?
Todos temos. Precisamos é de aprender a dar golpes de rins para lhe escapar, para a enfrentar. A solidão acompanha-nos pela vida fora, faz parte de nós, tão profundamente que não existe, não existe uma verdadeira solidão...

O contrário também é verdade!
Também. Mas eu nunca me senti muito isolada. Sempre tive o afecto das crianças e dos amigos, e quando se tem afecto o resto torna-se secundário.

As crianças sofrem muito de solidão?
Muito. Há imensas crianças abandonadas, desprezadas...

Por que será que as tratamos tão mal?
Não sei. Somos de costumes brandos para todos menos para elas.

Será por serem um desperdício, por virem sem ser desejadas, por terem o tempo que nós já não temos?
Talvez. Elas não são vistas como seres autónomos. Desde pequeninas que procuramos deformá-las, desde pequeninas que elas ouvem dizer: “Cresce e aparece, já a formiga tem catarro...”

E isso afecta-as?
Pois afecta. É horrível!

Dá muita importância ao passado?
Dou. É o meu património interior. Graças a ele atingi uma certa serenidade. Há mesmo coisas dele que me custaria muito perder...

Por exemplo?
Por exemplo, a nossa língua, a nossa literatura.

Receia pelo seu futuro?
Um pouco. Algumas línguas, algumas literaturas estrangeiras estão a exercer uma influência muito negativa sobre elas. Vamos a ver se resistem. Felizmente que os brasileiros estão a fazer força na sua defesa e na sua expansão.

Nunca se achou vítima, mal amada...?
Não, pelo contrário. Não conservo memória de mágoa de coisa nenhuma. Como se houvesse dentro de mim um mecanismo que o impedisse. Ninguém recebe aquilo que não dá.

Está mais do lado de dar do que do receber, como dizia Agostinho da Silva?
Oh, o nosso Agostinho! Esse sim, esse esteve sempre do lado de dar. Escrever e ensinar são a minha maneira de o fazer. O que é curioso é que quando comecei a ensinar não queria ser professora. Apetecia-me era continuar na faculdade, era tudo tão bom lá, os professores, os colegas, o Mário Soares, a Maria Barroso, a Maria Judite de Carvalho, a Luísa Dacosta, o Sebastião da Gama, o Lindley Cintra, o Urbano, o David, a Lurdes Belchior, o Joel Serrão, a Natércia Rocha, o Eurico Lisboa foram meus colegas. Sou uma espécie de dinossauro de uma geração.

Uma geração de notáveis...
Sim. Foi um tempo muito feliz, esse. Eu estudava por prazer. Quem não se sentiria maravilhado com mestres como Delfim Santos, Hernâni Cidade, Jacinto Prado Coelho, Vitorino Nemésio? Hoje a meta é tirar cursos, ter canudos que garantam empregos.

Já não garantem...
Pois não. Quando acabei Românicas pôs-se-me o problema do que fazer. Colocaram-me então numa escola técnica a dar Geografia Económica. Envergonhada e aflita por não saber nada da matéria, pus-me a estudá-la. Lá reagi. Nunca desisto, nunca tive tendências suicidas.

Nunca?
Não. Tenho muita pena que existam condições que propiciem o suicídio, cargas que o provoquem. É um gesto que respeito, às vezes é uma libertação. Preferia, no entanto, que todos conseguissem amar a vida.

Esteve muito tempo em escolas técnicas?
Eu estive sempre em escolas técnicas, por todo o país. Fui para a província, logo após o estágio, e por lá andei muitos anos, como uma nau Catrineta, de terra em terra, Almada, Barreiro, Elvas, Portalegre, em Portalegre conheci o José Régio, dava aulas no liceu, foi maravilhoso tê-lo encontrado.

Diziam que era uma pessoa um bocado complicada...
Pois diziam. Mas para mim não, para mim foi sempre muito generoso, demo-nos sempre muito bem. Depois do Alentejo fui para o Norte, para o Porto. A seguir ao 25 de Abril colocaram-me na Escola do Magistério Primário de Lisboa a dar aulas de Literatura Infantil aos professores.

Foi uma promoção?
Creio que não. Creio que se tratou apenas de uma mudança surgida na sequência da criação dessa cadeira. Foi a Dulce Rebelo e eu que fizemos o programa da disciplina.

Ah, é devido a si que as pobres das criancinhas têm de gramar as estuchas literárias que lhes dão...
Engana-se redondamente! Redondamente! Elas aceitam muito bem, muitíssimo bem a literatura. Em França, na Espanha, na Inglaterra, passa-se o mesmo. Os livros para as crianças e jovens são, não o esqueçamos, cada vez mais interessantes, mais variados. Alguns professores têm desenvolvido um trabalho de sensibilização para a leitura deveras notável. Trabalho que já vem de trás, que tem raízes profundas. O António Sérgio, o Jaime Cortezão, o Aquilino, a Ana de Castro Osório dedicaram-lhe grande atenção. Sabiam que escrever para crianças não era escrever para leitores menores.

E a Matilde, como começou?
A escrever? Comecei sem dar por isso. O contacto com as pessoas dos locais por onde andava fez-me apetecer ficcionar sobre elas.

Não era duro para uma jovem ser atirada, assim, sem condições, de terra para terra?
Era, era muito duro esse flutuar ora pelas planícies, ora pelas serras, de quarto alugado em quarto alugado...

Gostava de viver em quartos alugados?
Gostei. Eu vinha, porém, muitas vezes a Lisboa, para estar com os meus, conviver com os amigos. Um dos meus pequenos prazeres era andar de eléctrico. O eléctrico é um transporte muito simpático! É estável, é lento, é alegre. Conheci muita gente, ouvi muitas confidências nessas deambulações. Hoje quase não existem. Lisboa perdeu qualidade de vida, está uma cidade agressiva. Mas continuo a gostar dela. Continuo a gostar dos cafés que ainda existem, dos teatros, sempre amei o teatro. Fiz até bastante teatro na faculdade.

Escreveu?
Não, não, representei. Representei inclusive no Parque Mayer...

Andou a dar à perna no Parque Mayer?!
Ah, ah! Foi uma revista que fizemos lá. Era uma alegria. Representámos Molière, Torga, o David Mourão Ferreira também entrava. Essas experiências foram muito enriquecedoras. Se as não tivesse vivido, talvez não me tivesse encontrado. Nem escrito. Um dia dei comigo a redigir poemas. Fiquei surpresa. Quando vim a Lisboa, mostrei-os à Maria Lúcia Namorado, que dirigia então a revista “Os Nossos Filhos”. Ela publicou-os em livro, com a chancela da revista, ilustrados por crianças. O Calvet de Magalhães, o professor, ajudou no grafismo. Mais tarde, o Lopes Graça musicou os versos. Gostei muito dessa experiência, deu-me uma grande alegria. Deu-me também uma grande alegria a tese que fiz sobre jornalismo. Lamentavelmente perdi-a. Deve haver um exemplar na Biblioteca Nacional. Comecei pelo Fernão Mendes Pinto, pelo Fernão Lopes, por esses grandes cronistas repórteres. Fi-la com muito entusiasmo. Aliás, o jornalismo interessou-me primeiro que a literatura infantil. Colaborei muito em jornais e revistas.

E já não colabora?
Não. A imprensa tinha um papel muito importante a cumprir. Não devia limitar-se a ser, como sucede actualmente, um mero reflexo do que acontece. Devia ir mais longe, mais fundo, ser mais rica, sobretudo a televisão, para valorizar o público. Público infantil e não infantil. Ninguém vive separado do meio que o rodeia. Ninguém vive longe das palavras, dos gestos, das pressas, da poluição, da violência que existem à sua volta. Como não vive, acaba por confundir, às vezes de forma trágica, a realidade e a ficção. Com as crianças passa-se muito isso, não por menoridade, mas por excesso de imaginação. Por necessidade de sonho, de poesia. A poesia é muito necessária à criança, está-lhe muito presente. Ela tem uma linguagem muito poética, diz coisas maravilhosas sem ter consciência de que as diz.

O regime, a censura, a polícia, essas coisas todas não lhe saíram ao caminho?
Directamente, não. Eu fui sempre dizendo o que sentia de uma maneira honesta, suave, não agressiva. Por outro lado, a literatura infantil era pouco considerada, pouco importante para o poder. Houve sempre, continua a haver, preconceitos em relação a ela. O horrível surgiu quando a PIDE assaltou e fechou a Sociedade Portuguesa de Escritores, a cuja direcção eu pertencia, por termos dado o prémio ao Luandino Vieira. Estragaram a sede que tínhamos na Rua da Escola Politécnica.

Fazia militância política?
Militância política? Prefiro chamar-lhe participação política. Não possuía resistência para ir além disso...

Para ir além disso é preciso ter ressentimento?
Não necessariamente. Sou, aliás, incapaz de guardar ressentimentos.

Quer dizer que se o Salazar a convidasse para tomar chá...
Tomar chá?! Não ia!

Não ia? Mas diz-se que ele era uma pessoa encantadora...
Ah, ah! Não ia. Achava que ele se tinha enganado. Dizia-lho e não ia.

Dizia?
Dizia. Tinha a lealdade de lho dizer.

Dá-se bem com políticos?
Se são amigos pessoais, dou.

Mas não é uma entusiástica do poder...
Não, não sou. Nunca quis o poder. Nem dentro dos meus pequenos círculos. Já dá tanto trabalho mandarmos em nós próprios, quanto mais nos outros.

Por que se fartou da província?
Não fartei nada, que ideia! Efectivei-me e fui mandada para Lisboa. Eu era mandada, era um soldado...

Ora, com o prestígio que tinha facilmente arranjava cunhas para a colocarem onde quisesse.
Não é verdade. Eu não podia interferir nessas decisões.

Nunca teve alunos que se rebelaram contra si?
Contra mim? Não dei por isso!

Continua a ir todos os dias à escola?
Não. Agora vou só duas vezes por semana. Dou aulas a professores e educadores no Jardim-Escola João de Deus. Aulas de Literatura para a Infância e Juventude. Vou também muito a outras escolas falar de literatura, faço conferências, colóquios, essas coisas.

Os alunos gostam?
Gostam. As pessoas de uma maneira geral, e ao contrário do que se diz, gostam de ler, gostam de livros, gostam de conversar sobre livros.

A ideia de que se lê menos não corresponde, então, à verdade?
Corresponde só até certo ponto. Desde que sejam motivadas, as pessoas lêem. A leitura é uma troca de afectos... eu comecei a ler desde muito nova. A ler tudo. E compreendia tudo. Sempre tive, aliás, sensação de ser mais velha do que era. Mesmo em pequena. Às vezes fico com a sensação de que nunca fui criança. De não ter memória de criança.

Não foi feliz em criança?
Fui, fui até muito feliz. Mas tive sempre a ideia de ter esta idade. Talvez por isso encarei, desde jovem, o envelhecimento com serenidade, como um percurso a fazer amenamente. Desejava era não perder faculdades, estar plenamente viva enquanto viva. O trágico é que nós não somos preparados, não nos preparamos para essa caminhada. Pelo contrário, fugimos dela, recusamo-la, enaltecemos pateticamente o efémero...

A moda, a publicidade são terríveis nisso...
Pois são. Criam muito medo, muita violência nas pessoas. Medo delas próprias e dos outros. De que os outros não as aceitem.

E aceitam?
Por vezes não. O julgamento dos outros é, sob esse aspecto, cruel, muitíssimo cruel. Preocupei-me sempre em abordar o fenómeno do envelhecimento nos meus livros. As crianças precisam de o encarar com naturalidade, precisam de não ter receio do tempo. E à partida não têm. Veja-se a relação privilegiada que existe entre as crianças e os avós. É preciso preservá-la, recuperá-la. O prof. João dos Santos dizia que o homem é a sua infância. Foi ele, aliás, que inspirou a criação do Instituto de Apoio à Criança, presidido pela Manuela Eanes, onde se desenvolve um trabalho muito sério. Eu própria colaborei no seu lançamento. É uma pena não se poder fazer mais neste campo.

As crianças não votam...
Pois não. Só de dedinho no ar! Também se votassem já não eram crianças. Mas olhe que elas sabem bem o que querem.

São manhosas, não?
Ah, ah! Algumas são bem manhosas, de facto. São tão engraçadas com os seus subterfúgios. Com as suas argúcias, os seus mistérios. No outro dia, a neta da Maria Alberta Menéres disse-nos: “A vida está mal feita. Devia ser ao contrário. As pessoas deviam nascer velhinhas, muito velhinhas, depois ficavam novas, cada vez mais novas até que se metiam outra vez na barriga das mães.” Não é tão bonito?

Gostava que fosse assim?
Penso que não. Se fosse assim, já sabíamos tudo à partida, não fazia sentido viver. Era como ver um filme ao contrário, ler um livro do fim para o princípio. É tudo tão complicado, tão contraditório. Daí que seja cada vez mais necessário encontrar o outro lado, o lado bom das coisas, das pessoas.

Para não desanimar?
Sim. Desde cedo aprendi a não desanimar, a contar comigo, a ir andando, a não fugir, apesar das fraquezas todas.

Tem crenças religiosas?
É difícil responder. Há uma coisa de que estou certa: tenho uma religiosidade da vida. Tenho um desejo profundo de que haja algum sentido nela. Por isso admiro muito os que têm certezas e lutam por elas, com fidelidade, com honestidade.

Em qualquer campo?
Sim, em qualquer campo. Queria muito acreditar que a vida evolui, que não é em vão que as coisas sucedem, que não foi em vão que vi, que vivi tanta coisa. Que sofremos todos tanta coisa.


* publicado na revista Magazine a 13 de Dezembro de 1994

Entrevista

por Luís Souta

O facto de ter estudado em casa, com professores particulares, até à ida para a universidade, fê-la ter uma educação pouco comum à generalidade das nossas crianças?
Nessa altura ficava muito ansiosa por ver as outras crianças irem para a escola. Tinha muita sede de comunicação, tanta como agora tenho; e de solidão, mas não daquela solidão egoísta. Como hoje, também.

Tendo em conta esse tempo em que aprendeu em tutoria (ensino doméstico) e os muitos anos de professora na rede pública (ensino de massas), qual lhe parece o de maior eficácia na aprendizagem?
Com certeza o ensino de massas, quando é feito com amor e com saber. E com condições de trabalho. O ensino em comunidade é muito importante. A escola é um lugar de convívio muito importante para a criança.

No seu livro Segredos e Brinquedos (2000) considerava-se uma "professora de meninos, meninos do meu amar". Teve sempre essa ligação fraterna com os seus alunos?
Foram eles que me deram o sangue para viver.
José António Gomes, ao analisar em vários textos a sua produção literária, defende que nela há três grandes temáticas: a infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto. Pode-me falar de cada uma delas?
A infância dourada é a do sonho e a da inocência, mas uma inocência sábia. A criança sente o mal mas não desconfia e vê as coisas com os olhos de quem vê pela primeira vez, é maravilhoso. Foi um deslumbramento que eu fui apreendendo e vendo ao longo da vida.
A infância agredida é terrível. Agora, a comunicação social faz, muitas vezes, tema desta infância. Os direitos das crianças estão reconhecidos mas, infelizmente, ainda há muita criança agredida. Essa é uma mágoa que vou sentindo, o saber que a criança ainda não é respeitada, amada como devia. E estou a falar de Portugal mas por esse mundo fora a guerra põe até armas nas mãos das crianças. Já no fim da "caminhada" saber tudo isto dói mais ainda.
Quanto à terceira, qualquer Estado deve olhar a infância como um projecto social comprometido, sério. Estamos a deixar de parte o lado maravilhoso do nascer e do crescer. A criança é sensível ao afecto, percebe bem quando gostam dela. Ela precisa de um amor responsável. Uma criança que cresce sem amor é uma criança quase sempre condenada. E não é necessário infantilizar a infância mas sim encontrar a sua poesia. A criança que tem uma força e uma fragilidade tão grande deve ter voz. A verdadeira raíz de uma sociedade justa, fraterna reside nos Direitos da Criança, no seu real cumprimento.

É uma escritora com um "olhar dorido sobre os socialmente desafortunados e simpatia pelos mais fragilizados". Como vê essa sua constante chamada de consciência?
Como um apelo para a justiça. Tenho visto muita infância marginalizada, e não é só marginalidade, mesmo entre os que não têm carências económicas. Há famílias que são pobres do ponto de vista humano da sensibilidade para a vida, já nem digo para a sua poesia... Há o cultivar de um certo egoísmo, eu sei que temos que nos defender, até da vida, mas se por um lado caminhamos para uma consciencialização dos direitos das crianças, para a sua efectivação, por outro lado o homem também se deixa envolver num egoísmo que o empobrece bastante. Mas é verdade que tenho podido contactar com presenças humanas comoventes de um verdadeiro entendimento da Infância e da Juventude.

Um crítico literário dizia que a sua escrita ficcional tinha uma "tonalidade didáctico-moralizante".
Didáctica, talvez, se vier a ser aproveitada nessa vertente. Moralizante, eu acho que nunca quis moralizar no sentido de impor fosse o que fosse à vida da criança, mas há na escrita um desejo de amor, de justiça e de tolerância, de poder apreender a poética da vida. Será isso moralizante?

E sobre a eterna questão das relações entre realidade e ficção; a sua escrita reflecte a sua experiência de vida?
A ficção emerge da realidade. O sol e o menino dos pés frios (1971) tem muito de alunos que fui encontrando. Mesmo O Palhaço Verde (1962) nasceu quando eu estava em Portalegre e fui ao circo e os circos da província eram muito pobres. Eu acho que o circo tem tanto de mágico como de trágico. E o "menino dos pés frios" é, por exemplo, um rapazinho que eu conheci no Cabedelo (perto de Viana do Castelo), que vendia moinhos de vento na praia, chamava-se Joaquim e foi meu companheiro de praia durante dois anos. Ele dizia-me que os pais andavam pelas feiras e que ele dormia numa taberna, na estrada, e todos os dias de manhã lá aparecia ele com os seus moinhos. Aí está uma realidade. Uma, entre tantas mais.

Na introdução de uma das suas antologias, A Estrada Fascinante (1988), diz que a organizou para "todos aqueles que procurem junto da infância e da adolescência uma responsabilidade pedagógica através da literatura". Considera que a literatura pode ser uma boa fonte na tarefa pedagógica dos professores?
Pode e deve ser.
Não é apenas um instrumento de lazer?
Não. É preciso brincar para crescer, ter a felicidade de não estar comprometido com obrigações de um trabalho que não se ajusta à vida da criança. Toda a vida é aprendizagem... Mas vejo que na literatura dos adultos a infância está muito presente, embora por vezes de uma maneira quase inconsciente porque a vida é infância, adolescência e estado de adulto. E há autores de Literatura para a Infância que trataram com grande delicadeza a infância, portanto esta literatura é um entretenimento mas não o é de forma inconsequente, tem uma validade de transmissão de valores humanos, estéticos e de diálogo com a vida e com os outros. Aprender o valor da alegria e da tristeza é muito importante numa pedagogia do ser e a literatura para crianças deve ser muito responsável. Também há aquela puramente lúdica onde a criança aprende a musicalidade da palavra, o encanto da graça, do brincar. É muito importante a aprendizagem da língua portuguesa, não falo nas línguas estrangeiras que também são necessárias, mas hoje talvez se acumule demasiada diversidade de aprendizado para a criança e ela também precisa de paz, de silêncio. Sabemos que, com a globalização, o inglês se torna muito importante, mas a criança deve aprender a beleza do seu falar materno, em plenitude.

Numa outra antologia, Todas as Crianças (1979), afirma: "oxalá estas páginas ajudem a encontrar a infância". Acha que conseguiu encontrar a infância, esse "segredo do Homem" de que falava João Santos?
Tenho-a encontrado nos olhos das crianças quando vou às escolas. Nas ruas. Mesmo no estado adulto a infância tem muita força. Talvez se possa esquecer a infância, mas há vidas que depois nos dão o deslumbramento de estar vivo e de ver as coisas sem mágoa, apesar de tudo.

Na sua poesia é nítida a ligação que mantem com a Natureza.
Eu gostei sempre muito de olhar as árvores, os animais, o mar, os céus, o mundo. É a vida, das várias recordações que tenho da infância. Recordo que na quinta onde nasci e vivi, em Benfica, havia flores, árvores, animais. Tal como na aldeia distante da minha avó paterna.

Num poema chega a falar na "cor do silêncio... e verde é o silêncio"
Às vezes perguntam-me porque é que eu gosto tanto do verde e eu respondo que gosto de todas as cores. Talvez pela natureza ser muito verde, o mar também é verde... e azul, o verde fugia do arco-íris ao escrever.

Passemos aos nossos dias. Como a vê a Educação?
Eu queria que estivesse melhor, mas é fácil querer isto... Encontro, no entanto, professores maravilhosos que continuam a querer fazer progredir os alunos com inteligência e amor. Hoje encontro ainda uma realidade que eu não tinha, a existência de bibliotecas actuantes. Agora as bibliotecas têm vida, dantes havia livros em armários...

Não é das que comunga da ideia de que os jovens lêem menos hoje em dia?
Podem parecer ler menos, porque a massa dos jovens escolarizados é grande. Mas lêem. Antigamente esse espaço de potenciais leitores era muito mais reduzido, hoje há uma maior diversidade de circunstâncias para se ser leitor. O tempo de que o aluno dispõe também é diferente. A televisão podia ter um papel não digo didáctico, no sentido estrito do termo, mas fecundo na abertura para a cultura, não uma cultura elitista mas a cultura autêntica da vida com verdadeiro entendimento da Infância e da Juventude. E também temos os computadores e a Internet, ainda assim não podemos deixar que a "leitura" fique só por aí. De forma alguma.

Uma das mudanças tem a ver com o facto de muitas escolas proporcionarem um contacto directo com os escritores...
Os alunos, muitas vezes, julgavam que os escritores tinham todos morrido e quando começámos a aparecer por lá... mostrámos afinal que não éramos o "clube dos poetas mortos"... E, hoje, o encontro é tão feliz. Desses encontros trago sempre um quinhão de felicidade que os alunos generosamente me entregam na fraternidade do ler, do seu ler. Uma felicidade que me ensina tanto. Assim eu possa continuar a aprender.


* publicado no jornal A Página, ano 11, nº 114, Julho 2002, p. 40.


«Ouvi um tango na rádio e comecei a rodar, num pé só»

por Alexandra Lucas Coelho

Os amigos mais novos dizem: "É como se ela tivesse a nossa idade." Mas ela lembra-se de Sebastião da Gama, a chegar da Arrábida. De David Mourão-Ferreira, no restaurante Pedrisco, em Lisboa. De José Régio, na Pensão Vinte e Um, em Portalegre. Estreou-se com uma ficção para adultos e escreveu mais de 20 livros para crianças. Este mês recebe um prémio carreira.
A história do tango não acabou lá muito bem. "Estava sentada no sofá, ouvi um tango na rádio, levantei-me e comecei a rodar, como a papoila, num pé só. Caí e parti a perna." Isto aconteceu porque Matilde Rosa Araújo gosta muito de música e "o tango é uma música muito física". E aconteceu ia ela fazer 80 anos. Agora está com 82.
Bem tinham dito amigos com menos 20 anos, como os escritores Alice Vieira ("Quando estamos com ela, é como se tivesse a nossa idade") ou José Jorge Letria ("Ela tem sempre a idade dos amigos mais novos"). Ambos falam no "sentido de humor finíssimo" de Matilde Rosa Araújo - e, palavra, por palavra, é exactamente o que também diz dela José António Gomes, professor da Escola Superior de Educação do Porto e autor de uma tese de mestrado parcialmente dedicada à obra desta mulher que a Sociedade Portuguesa de Autores vai homenagear dentro de dias com um prémio carreira. A cerimónia inclui uma mensagem do Presidente da República, Jorge Sampaio.
Matilde Rosa Araújo publicou mais de 20 livros de poesia e narrativa para crianças, além de livros para adultos. Continua a viver na casa que era dos pais, um silencioso segundo andar de luz velada por cortinas brancas, cristais, livros e bonecas, perto do Parque Eduardo VII, em Lisboa.
Estava à nossa espera junto ao elevador e ainda mal nos tínhamos sentado já oferecia chocolates.
Matilde Rosa Araújo nasceu no último dia da Primavera, 20 de Junho, em 1921. A casa da infância tinha "árvores, água, patos, andorinhas, uma vaca, um burro, estufa de plantas" - uma quinta, pois, no tempo em que Benfica era campo, perto do Jardim Zoológico. A família da mãe tinha origens, galegas, o pai (comerciante de ourivesaria) vinha de Monção. Havia uma irmã mais velha e uma irmã mais nova. "Eu estou no meio, sem ser a virtude..." Havia alguns livros, "não muitos", Júlio Dinis, Eça, que ela foi lendo.
"O que me encantava eram os jornais, gostava muito de os ver chegar, ainda hoje tenho uma avidez pêlos jornais." Não foi à escola, teve mestres privados, começando pela professora primária, "D. Joana Vassalo e Silva, irmã de D. Maria Lamas". Quase completou o curso de Piano ("Só não fiz o último ano") com o professor Campos Coelho.
Aos 18 anos a família mudou-se para o centro de Lisboa e ela entrou em Românicas na Faculdadede Letras. "Foi um deslumbramento, uma alegria." Colegas? Maria de Lurdes Belchior, Sebastião da Gama, Luís Filipe Lindley Cintra, Luísa Dacosta, DavidMourão-Ferreira, Helena Cidade Moura, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho...
Professores? Jacinto do Prado Coelho, Vitorino Nemésio, Hernâni Cidade, Vitorino Magalhães Godinho...
Por onde começar? Sebastião da Gama, três anos mais novo, vindo da Arrábida? "O meu grande amigo e companheiro. Era uma dádiva. Aparecia sempre com a sua boinita, um cravinho encarnado, a dar beijos a todos...
Tinha um amor à vida, aos outros! Baixinho, os olhos piscos, sempre com espírito crítico e muita graça. Chegava à faculdade e dizia: 'Vejam a coisa mais linda!' E mostrava um poema que tinha feito na camionete ou no barco." Matilde chegou a passear com ele e a noiva, Joana, na Arrábida. "Era um irmão." Trocavam poemas. "Não fazíamos propriamente tertúlia, encontrávamo-nos na pastelaria O Beijinho da Infância, ao cimo das escadinhas da Arrochela." Isto, no tempo em que junto à Faculdade de Letras ainda se ouviam burros, "porque havia uma casa onde iam as lavadeiras com os burros".
David Mourão-Ferreira "era um encanto, gentilíssimo" e Lindley Cintra "seria o 'grand prince'", tinha "uma vocação musical muito marcada, era um homem cultíssimo e bom, um grande aluno e depois um grande professor".
"Também escrevia poemas, ainda tive alguns." O par Urbano-Maria Judite: "Assisti àquele enamoramento, os olhos verdes da Judite a olharem para o Urbano..." As aulas de Literatura Portuguesa de Jacinto Prado Coelho ("a quem devo tanto"). As de Nemésio: "Começo tinham, e depois voavam por todo o lado." A descoberta dos poetas: "Camões, Cesário, Rimbaud, Baudelaire... Tenho um retraio dele no escritório, olhava para ele como para um amigo." E Cervantes, Gil Vicente, Tolstoi, Tagore. "Foi um tempo de luz." Escrevia, já? "Uns papelinhos, que ficavam comigo." Até que um dia não ficaram, e isso foi antes de acabar a faculdade. Para o concurso Procura-se Um Novelista, do jornal "O Século", Matilde Rosa Araújo enviou "uma história muito triste, de eutanásia, uma mulher que vê o marido caminhar para a morte e que o mata... no fundo uma história de amor". Aquilino Ribeiro estava no júri.
"Ganhei", diz ela, abrindo as mãos, como se não soubesse como. Assim foi publicada em 1943 "A Garrana", a sua obra de estreia.
Saída da faculdade em 1945, Matilde Rosa Araújo começa a dar aulas de Português e Francês no ensino técnico, ou seja, a meninos sem origem nem destino de desafogo. Fez o estágio na Veiga Beirão de Lisboa, com Sebastião da Gama, e depois andou provisória por Barreiro, Almada, Portalegre, Eivas, Leiria, Caldas, até ficar efectiva no Porto e voltar a Lisboa.
Nisto, passaram.-se anos. E nunca alugou ou comprou um espaço seu. Manteve morada na casa dos pais em Lisboa, para onde voltava aos fins-de-semana. "Não foi duro. Os alunos apareciam, e aprendi tanto com eles, ou julgo que aprendi... a vida, a descoberta da infância, a dor da juventude." Fala como se não as tivesse vivido? "Enquanto as vivi, não as sabia ler." É desta experiência que vem o primeiro livro para crianças, "O Livro da Tila", de 1957, e a sua sequência, "O Cantar da Tila", dez anos depois, com ilustrações de Maria Keil.
"Estava no Alentejo quando escrevi 'O Livro da Tila'. Escrevia no comboio." Entre Lisboa e Portalegre. "Em Portalegre conheci o José Régio. Embora alguns o pudessem achar um misantropo, a ele só devo a condescendência de um grande poeta que tentava ouvir uma professora que tinha ido parar àquela terra. Eu estava hospedada na Pensão Vinte e Um, da D.
Rosalina Vinte e Um, uma senhora encantadora que sabia os nomes de todas as flores daquela serra de S. Mamede que ardeu o ano passado... Ver essa serra à noite com os pirilampos era irreal... Foi no jardim da D. Rosalina que ouvi pela primeira vez, um rouxinol. O José Régio ia lá almoçar." A seguir ao primeiro livro, continuou.
"Escrevia muito à noite, nos intervalos, no café." Em 1950, David Mourão-Ferreira e António Manuel Couto Viana fundam a revista "Távola Redonda", uma alternativa ao programa neorealista. Matilde, como Sebastião da Gama e Luís Amaro, colabora. "Reuniamo-nos no Pedrisco, um restaurantezinho na Alvares Cabral." Mas tal como colabora na "Távola Redonda", e na sua sucessora, a "Graal", também participa na "Seara Nova".
Politicamente, estava à esquerda. "Julgo que sim, sempre", responde ela abrindo as mãos, como uma evidência.
E steve sempre do lado certo, jcontra o fascismo", diz José António Gomes, autor da tese "A Poesia na Literatura para a Infância - A produção portuguesa do pós-guerra à actualidade e o caso de Matilde Rosa Araújo" (edição Asa).
Destaca, na poesia, "O Livro de Tila" — cujos poemas foram musicados por Lopes Graça — e "O Cantar de Tila", Tila é como os amigos tratavam Matilde, e, se no primeiro a Tila ainda é pequena, no segundo é uma adolescente a descobrir o amor e o desejo. "Há ali por detrás algumas alusões a alguma relação um pouco difícil com uns pais que a preservaram das 'ameaças' do amor." Realça ainda "Segredos e Brincadeiras" (2000, o mais recente), e na prosa "O Palhaço Verde" (1962) e "O Sol e o Menino dos Pés Frios" (1972).
Próxima dos neo-realistas na dedicação às crianças mais pobres, mas "sem os amanhãs que cantam" do projecto ideológico, por outro lado sensível à "arte pela arte" da clássica "Távola Redonda", Matilde Rosa Araújo soube ser transversal, diz José António Gomes.
"Não conheço ninguém que alguma vez tenha dito uma palavra contra ela. Ê de uma grande atenção aos outros, de uma enorme doçura." Também pelo seu trabalho nas escolas, pelas antologias de literatura que fez, relembra este professor, Matilde Rosa Araújo foi "uma espécie de mãe da literatura infantil em Portugal" — o pai fora o Aquilino do "Romance da Raposa".
Além da sensibilidade feminina que trouxe, há uma outra característica: "A poesia dela é franciscana, na relação com a natureza, os animais, os frutos, as estrelas. A forma quase fantástica como animiza todo esse universo distingue-a dos lugares-comuns de algum neorealismo. E há uma mitificação dainfância, como o lugar onde repousa o futuro do mundo." Encontros de perto ou de longe, teve-os Matilde Rosa Araújo à direita como à esquerda, e para todos tem palavras de admiração.
José Gomes Ferreira: "Conheci-o muito bem. Eu achava que ele era a poesia que falava." Carlos de Oliveira: "Um homem extraordinário, de uma integridade mental e poética." Sophia de Mello Breyner: "Nunca fomos íntimas, fui duas ou três vezes a casa dela. Achei-a sempre uma grande personagem poética." Eugênio, Jorge de Sena, Herberto, um respeito à distância. Ruy Belo, próximo: "Fomos mesmos amigos. Era um poeta verdadeiro. Havia nele uma pureza. Quase que um pairar na vida." E Ferreira de Castro, o autor de "A Selva", que agora sobressai na estante desta sala, numa imponente edição.
"Foi um grande amigo que acho que hoje está muito esquecido... Aquela criança que foi da sua terra trabalhar para a Amazónia e teve o desejo de aprender, de se ilustrar..." Matilde Rosa Araújo pertencia à direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores quando, em 1965, esta instituição premiou o angolano Luandino Vieira, então preso no Tarrafal. A Pide invadiu a sede e demitiu toda a direcção. "Dói-me ainda. Telefonaram-me a dizer que a Pide tinha destruído tudo..." No 25 de Abril ficou em casa, mas no 1° de Maio de 1974 passou pela manifestação do Porto. "Vivi sempre com uma serenidade." Não foi pessoalmente incomodada nem antes nem depois da revolução, diz. E nunca pensou deixar de ser professora. "Talvez não me sentisse com o estatuto de escritora. E gostava muito de dar aulas." Não casou, nem teve filhos. "Julgo que não foi uma escolha. Ter um filho, um lar, deve ser maravilhoso, mas não aconteceu. Nunca pensei encerrar capítulos, estive sempre aberta para a vida, portanto não ia fechar esse. Mas não aconteceu." Partilha o casarão em que estamos com a irmã, Maria Luísa. Os pais morreram há cerca de 20 anos, altura em que se reformou, sem deixar de visitar escolas. Conhece Portugal inteiro, com ilhas. "Venho feliz, renovada." Só parou quando aconteceu "o ataque".
É como ela chama, com doce ironia, ao que lhe aconteceu em Novembro: na Avenida da Liberdade uma mulher roubou-lhe a mala por esticão e arrastou-a. Fez várias fracturas e esteve dois meses internada. Ainda está a fazer fisioterapia.
De resto, lê, ouve música (ainda não está pronta para um novo tango), fala com os amigos, escreve cartas e tem "uns contos e uns poemas para adultos" na gaveta.
"Pode ser que ainda haja um dialuminoso e eu perca o medo de mexer no computador."

publicado na revista Pública de 9 de Maio de 2004

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