Relatório integral da PIDE sobre o Festival de Vilar de Mouros (1971)
Na edição desta semana a revista Sábado publica o relatório integral que a PIDE elaborou sobre a edição de 1971 do Festival de Vilar de Mouros.
No site, o documento surge desgarrado e sem contextualização. Vilar de Mouros foi o primeiro evento do género a realizar-se em Portugal. A primeira edição arrancou ainda no tempo da ditadura. Seria preciso esperar até Abril de 1974 pela democracia. Além de pioneira, a organização do festival representou uma iniciativa corajosa que ousou montar palco e dar eco de multidão – ao ar livre e bem à vista de todos – aos ventos de liberdade que sopravam no mundo e que o garrote da censura e da repressão que se conhecem ao regime mantinham a pulso interditos do país.
Realizou-se numa aldeia ao norte de Portugal, a poucos quilómetros de Vila Nova da Cerveira, quase rente à fronteira com Espanha, numa região marcada pela interioridade, cristalizada aos tempos por força da longa distância à capital, fechada aos avanços da época por força de um índice de analfabetismo generalizado, de uma religiosidade fervorosa e de uma tradição conservadora nos hábitos e costumes, onde os efeitos do atraso cultural com que, na época, a ditadura castigava Portugal se faziam sentir de forma ainda mais gritante.
É o festival mais antigo que acontece em Portugal, pese embora uma certa irregularidade, como sucedeu ainda este ano, com a edição a ser cancelada a um mês da realização do festival.
Estive por diversas vezes em Vilar de Mouros: primeiro como espectadora, mais tarde várias vezes em reportagem. Andei por lá em anos com palco e cartaz e em anos de hiato ao calendário de eventos. Guardo de todas essas passagens e permanências um manancial de histórias, episódios e relatos, especialmente das gentes de Vilar de Mouros. São testemunhos ímpares para se compreender a evolução de Portugal em diferentes planos, durante as últimas décadas. Conversei com os protagonistas da maioria das coisas descritas ou distorcidas pelo relatório da PIDE que agora se publica. Ainda tive o privilégio de conhecer algumas pessoas que já em 1971 pertenciam à geração mais idosa, a anos luz, portanto, do universo dos milhares de visitantes que, de um dia para o outro, lhes entraram em festa pela terra adentro, uma festa que nunca tinham visto, uma forma de festejar que não só desconheciam como nunca, nem nos sonhos mais fantasiosos e imaginativos, tinham sequer sonhado que pudesse existir e ser possível. É muito interessante vê-los vasculhar memórias e contrariar o esquecimento para onde naturalmente a velhice tende a lançar-lhas. Muito interessante ouvi-los narrar o que foi que sucedeu por ali, naqueles tempos, colocando-se ora nas perspectivas que eram as suas, ora naquelas que, com o curso dos anos, lhes foram ganhando o olhar. Muito interessante perceber as múltiplas formas como cada um encarou 'o inédito', ouvir o acontecimento narrado pelos que deliraram com 'a novidade', pelos que se sentiram acabrunhados com ela, pelos que vislumbraram nisso uma primeira janela de oportunidades que se abria à terra, qualquer coisa por onde entrasse o progresso e lhes chegassem as divisas que ele promete, ou pelos que simplesmente experimentaram pela primeira vez o orgulho de ter Vilar de Mouros colocado no mapa. Fora a multidão que atravancava a povoação, dividida ao meio por uma ponte de pedra, e que durante esses dias impedia que se conseguisse passar de uma lado ao outro, fora o saque às hortas e aos quintais, aquilo que no travesso dos anos ainda é recordado são as pessoas novas e diferentes, as raparigas bonitas vestidas à moda com calças à boca de sino, os cabelos compridos, o à vontade dos beijos e a naturalidade com que nadavam nus ou quase sem roupa no rio, a música alegre até de madrugada que não deixava ninguém dormir, o prazer de dançar e sentir o pé a puxar para a dança. Ficaram no travesso dos anos, a memória de muitos watts, Vilar iluminado como se fosse um presépio de Natal, mais luzes a alumiar o recinto montado no adro do pinhal e da igreja do que em todas as casas das cercanias, se juntassem a luz eléctrica que as abastecia. Ficaram os jornais, um ou outro livro que aquelas pessoas levavam e às vezes deixavam na aldeia com os poucos que sabiam ler. Ficaram as caras conhecidas dos locutores de televisão que por lá apareceram, um ou outro actor, gente como o 'senhor José Cid', que veio com o Quarteto 1111, e que eles até já tinham visto nas escassos televisores que faziam o luxo de quem os tinha, em Vilar. Só não imaginavam que o 'senhor Cid' ainda havia de ser tão conhecido, de ganhar Festivais da Canção e de ir lá fora representar Portugal. Como não imaginavam que aquele homem esquisito e extravagante se chamasse Elton John, o amigo famoso da Princesa Diana que até chorou e lhe cantou no funeral. Em 1982 viriam os U2, a banda que netos e bisnetos continuam a venerar e que, na altura, mal se sabia por cá que existia. Como viriam os Xutos e Pontapés e os Madredeus e tantos, tantos outros, famosos dentro e fora de portas.
No site, o documento surge desgarrado e sem contextualização. Vilar de Mouros foi o primeiro evento do género a realizar-se em Portugal. A primeira edição arrancou ainda no tempo da ditadura. Seria preciso esperar até Abril de 1974 pela democracia. Além de pioneira, a organização do festival representou uma iniciativa corajosa que ousou montar palco e dar eco de multidão – ao ar livre e bem à vista de todos – aos ventos de liberdade que sopravam no mundo e que o garrote da censura e da repressão que se conhecem ao regime mantinham a pulso interditos do país.
Realizou-se numa aldeia ao norte de Portugal, a poucos quilómetros de Vila Nova da Cerveira, quase rente à fronteira com Espanha, numa região marcada pela interioridade, cristalizada aos tempos por força da longa distância à capital, fechada aos avanços da época por força de um índice de analfabetismo generalizado, de uma religiosidade fervorosa e de uma tradição conservadora nos hábitos e costumes, onde os efeitos do atraso cultural com que, na época, a ditadura castigava Portugal se faziam sentir de forma ainda mais gritante.
É o festival mais antigo que acontece em Portugal, pese embora uma certa irregularidade, como sucedeu ainda este ano, com a edição a ser cancelada a um mês da realização do festival.
Estive por diversas vezes em Vilar de Mouros: primeiro como espectadora, mais tarde várias vezes em reportagem. Andei por lá em anos com palco e cartaz e em anos de hiato ao calendário de eventos. Guardo de todas essas passagens e permanências um manancial de histórias, episódios e relatos, especialmente das gentes de Vilar de Mouros. São testemunhos ímpares para se compreender a evolução de Portugal em diferentes planos, durante as últimas décadas. Conversei com os protagonistas da maioria das coisas descritas ou distorcidas pelo relatório da PIDE que agora se publica. Ainda tive o privilégio de conhecer algumas pessoas que já em 1971 pertenciam à geração mais idosa, a anos luz, portanto, do universo dos milhares de visitantes que, de um dia para o outro, lhes entraram em festa pela terra adentro, uma festa que nunca tinham visto, uma forma de festejar que não só desconheciam como nunca, nem nos sonhos mais fantasiosos e imaginativos, tinham sequer sonhado que pudesse existir e ser possível. É muito interessante vê-los vasculhar memórias e contrariar o esquecimento para onde naturalmente a velhice tende a lançar-lhas. Muito interessante ouvi-los narrar o que foi que sucedeu por ali, naqueles tempos, colocando-se ora nas perspectivas que eram as suas, ora naquelas que, com o curso dos anos, lhes foram ganhando o olhar. Muito interessante perceber as múltiplas formas como cada um encarou 'o inédito', ouvir o acontecimento narrado pelos que deliraram com 'a novidade', pelos que se sentiram acabrunhados com ela, pelos que vislumbraram nisso uma primeira janela de oportunidades que se abria à terra, qualquer coisa por onde entrasse o progresso e lhes chegassem as divisas que ele promete, ou pelos que simplesmente experimentaram pela primeira vez o orgulho de ter Vilar de Mouros colocado no mapa. Fora a multidão que atravancava a povoação, dividida ao meio por uma ponte de pedra, e que durante esses dias impedia que se conseguisse passar de uma lado ao outro, fora o saque às hortas e aos quintais, aquilo que no travesso dos anos ainda é recordado são as pessoas novas e diferentes, as raparigas bonitas vestidas à moda com calças à boca de sino, os cabelos compridos, o à vontade dos beijos e a naturalidade com que nadavam nus ou quase sem roupa no rio, a música alegre até de madrugada que não deixava ninguém dormir, o prazer de dançar e sentir o pé a puxar para a dança. Ficaram no travesso dos anos, a memória de muitos watts, Vilar iluminado como se fosse um presépio de Natal, mais luzes a alumiar o recinto montado no adro do pinhal e da igreja do que em todas as casas das cercanias, se juntassem a luz eléctrica que as abastecia. Ficaram os jornais, um ou outro livro que aquelas pessoas levavam e às vezes deixavam na aldeia com os poucos que sabiam ler. Ficaram as caras conhecidas dos locutores de televisão que por lá apareceram, um ou outro actor, gente como o 'senhor José Cid', que veio com o Quarteto 1111, e que eles até já tinham visto nas escassos televisores que faziam o luxo de quem os tinha, em Vilar. Só não imaginavam que o 'senhor Cid' ainda havia de ser tão conhecido, de ganhar Festivais da Canção e de ir lá fora representar Portugal. Como não imaginavam que aquele homem esquisito e extravagante se chamasse Elton John, o amigo famoso da Princesa Diana que até chorou e lhe cantou no funeral. Em 1982 viriam os U2, a banda que netos e bisnetos continuam a venerar e que, na altura, mal se sabia por cá que existia. Como viriam os Xutos e Pontapés e os Madredeus e tantos, tantos outros, famosos dentro e fora de portas.
Informação nº 226-C.I.(I)
Distribuição: Presidência do Conselho, Ministério do interior, Ministério da Educação Nacional
Assunto: Festival de música “Pop” em Vilar de Mouros
A seguir se transcreve o texto de uma informação redigida por um nosso elemento informativo que assistiu ao “festival” em questão, que teve lugar nos dias 7 e 8 do corrente, a qual se reproduz na íntegra, para não alterar os detalhes que foram alvo do seu espírito de observação:
“Dias antes do festival, foram distribuídos, nas estradas do País e nas estradas espanholas de passagem de França para Portugal, panfletos pedindo aos automobilistas que dessem boleias aos indivíduos que iam ver o festival.
No 1º dia, o espectáculo começou às 18h00 e prolongou-se até às 4 da manhã.
Ao anoitecer, o organizador, um tal Barge, anunciou que tinham sido vendidos 20 mil bilhetes (a 50$00 cada). Esperavam vender 50 mil bilhetes para cobrir as despesas, que seriam aproximadamente a 2.500 contos.
Diziam que tiveram de mandar vir o conjunto Manfred Mann de Inglaterra, mas parece que estava no Algarve, e por isso, a despesa com eles não foi tão grande como parecia.
Um dos cantores, Elton John, causou desde o começo má impressão, com os seus modos soberbos e as suas exigências: carro de luxo para as deslocações, quartos de luxo para os acompanhantes e guarda-costas, etc.
O recinto do festival era uma clareira cercada de eucaliptos, com um taipal à volta e uma grade de arame do lado do ribeiro.
Na noite de 7 estavam muitos milhares de pessoas e muita gente dormiu ali mesmo, embrulhada em cobertores e na maior promiscuidade.
Entre outros havia:
crianças de olhar parado indiferentes a tudo
grupos de homens, de mão na mão, a dançar de roda
um rapaz deitado, com as calças abaixadas no trazeiro
um sujeito tão drogado que teve de ser levado em braços, com rigidez nos músculos
relações sexuais entre 2 pares, todos debaixo do mesmo cobertor na zona mais iluminada
sujeitos que corriam aos gritos para todos os lados
bichas enormes a comprar laranjadas e esperando a vez nas retretes (havia 7 ou 8 provisórias) mas apesar disso, houve quem se aliviasse no recinto do espectáculo.
porcaria de todo o género no chão (restos de comida, lama, urina) e pessoas deitadas nas proximidades.
Viam-se algumas bandeiras. Uma vermelha com uma mão amarela aberta no meio (um dos símbolos usados na América pelos anarquistas); outra branca, com a inscrição “somos do Porto” com raios a vermelho e uma estrela preta.
A população da aldeia, e de toda a região, até Viana do Castelo, a uns 30 km de distância, estava revoltada contra os “cabeludos” e alguns até gritavam de longe ao passar “vai trabalhar”. Foram vistos alguns a comer com as mãos e a limparem os dedos à cabeleira.
Viam-se cenas indecentes na via pública, atrás dos arbustos e à beira da estrada.
Em Viana do Castelo dizia-se que os “hippies” tinham comprado agulhas e seringas nas farmácias da cidade.
Havia muitos estudantes de Coimbra, e outros que talvez fossem de Lisboa ou do Porto. Alguns passaram a noite em Viana do Castelo em pensões, e viam-se alguns de muito mau aspecto, parece que vindos de Lisboa, que ficaram numa pensão.
Houve gritos de Angola é... (qualquer coisa) durante a actuação do conjunto Manfred Mann (de que faz parte um comunista declarado, crê-se que chamado Hugg).
Fora do recinto, junto do rio e de uma capela, havia muitas tendas montadas e gente a dormir encostada a árvores ou muros e embrulhada em cobertores.
Houve grande confusão junto às portas de entrada.
Havia quatro bilheteiras em funcionamento permanente e muito trânsito.
Toda aquela multidão de famintos, sem recursos para adquirir géneros alimenticios indispensáveis, como se de uma praga de gafanhotos se tratasse, se lançou sobre as hortas próximas colhendo batatas e outros produtos hortícolas, causando assim, grandes contrariedades aos seus proprietários, muitos deles de débeis recursos económicos.
26-8-1971
Posted by por AMC
on 11:47. Filed under
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