«Festas juninas: as curiosidades de um dos festejos mais populares do Brasil»
por Renata Cruz
imagem da Biblioteca Nacional Brasileira
A festa junina estava para começar em Cantagalo, cidade da Região Serrana do Rio. Bandeirinhas enfeitavam o salão, comidas típicas já estavam espalhadas na mesa e as pessoas chegavam – de remendo na calça, camisa quadriculada, dente pintado e chapéu de palha - para dançar quadrilha. Um senhor de aparência humilde, mas bem arrumado com calça e blusa social, chega devagar e olha atentamente para dentro do salão. Ele pensa um pouco, dá meia volta e desiste de entrar.
Curiosa com a cena, a pesquisadora e professora da Uerj Cáscia Frade, que estava na festa, decide perguntar àquele homem por que ir embora. A resposta foi inesperada:
- Acho que errei o dia da festa. Falaram que era dia da festa de São João, mas não estou reconhecendo nada. As pessoas estão com as calças remendadas e de chapéu – disse ele.
A situação descreve bem a transformação de uma das festas mais populares do Brasil ao longo do tempo. Festa que começou bem longe do Brasil, bem antes de Cristo e bem antes da existência da Igreja Católica. Quem vai explicar essa história toda e o motivo para o homem não ter entrado na festa é a professora Cáscia:
- O que hoje conhecemos como festa junina tem origem nas celebrações dos povos agrários existentes antes da criação da Igreja Católica. Essas comemorações estavam ligadas aos fenômenos da natureza, como o solstício de verão, por exemplo, quando se comemorava a colheita na Europa. Era uma forma de agradecer o calor, a vida. A fogueira vem daí, como símbolo do calor, de vida. Quando a Igreja Católica surge e começa a organizar seu calendário, ela reapropria e resignifica algumas festas já existentes e passa a comemorar os santos Antonio, João e Pedro no mês de junho, aproveitando a ideia do sol que ilumina, que purifica. O elemento principal dessas celebrações é o fogo. O foguete e o balão surgem daí – detalha.
Entendido até aqui, mas então como estas festas chegaram ao Brasil e qual a razão das roupas remendadas, das bandeirinhas e do forró? Segundo a professora, as comemorações juninas vieram no processo da catequese trazido pelos jesuítas.
- Depois dos jesuítas, a vinda da missão cultural de Dom João VI contribuiu para incrementar os festejos. Com a missão cultural, vieram artistas e também um marcador de quadrilè, que era uma dança da corte francesa. Essa dança cheia de marcações ganhou a simpatia dos serviçais do palácio e saiu dos salões da corte para o quintal e para a senzala, e aquela marcação que ficou na memória é repetida pelo povo e acrescentada a experiências pessoais do tipo “Olha a chuva, olha a cobra”- continua a professora.
O forró, as bandeirinhas e as roupas
Pode não parecer, mas o forró como “música oficial” da festa junina é algo relativamente novo. Assim como outras apropriações culturais, o ritmo entrou para compor a cara da festa em um outro momento histórico, o da chamada cultura de massa. Isso aconteceu basicamente no Nordeste, com uma forma de expandir o turismo. No começo, a festa junina tem uma aceitação muito grande na zona rural por causa da terra, do plantio. Nesses lugares é uma festa devocional, feita em agradecimento aos santos. Quando a festa vem para a cidade, ela perde a religiosidade e vira lucro, uma forma de ter um ganho.
- A cultura é sempre um processo contínuo. A igreja se apropriou das festas anteriores à existência dela. Com a vinda da corte ao Brasil, as comemorações ganharam novos elementos. Tempos depois, a cultura de massa se apropriou e deu uma configuração à festa conforme o seu interesse. É daí que surgem as disputas de maior forró do mundo nas cidades de Campina Grande e Caruaru. Já a bandeirinha é um elemento decorativo que frequenta várias festas populares, como Natal e Copa do Mundo, não é exclusiva desse ciclo. O que restou da festa original é o fogo, a fogueira.
Os trajes típicos – com remendos nas calças, chapéu de palha e dentes pintados de preto - são um capítulo à parte na história das festas juninas e um dos fatores mais representativos da mudança no estilo dos festejos ao longo dos tempos. Quem leu este texto até aqui, vai entender agora por que o senhor humilde do começo da história desistiu de entrar na festa junina em Cantagalo. Com a palavra, mais uma vez, a professora Cáscia:
- Eu, pessoalmente, atribuo isso ao livro Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, que massificou a ideia do caipira. Esse estereótipo do caipira foi apropriado por um laboratório que tinha, entre os seus remédios, um vermífugo. Para fazer a divulgação desse vermífugo, o laboratório fazia um folheto baseado no personagem de Monteiro Lobato. No livreto, o sujeito está na roça, anêmico, desanimado, e então aparece um médico explicando que os vermes entram pelos pés, por isso as pessoas não devem ficar descalças. Quando o médico volta para examinar o sujeito ele está usando botas e bem melhor de saúde. E, com um detalhe: além dele, todos os bichos estavam calçados – conta Cáscia.
Desse modo, constrói-se a imagem do morador do interior como alguém ingênuo, bobo, e as escolas passam a adotar isso nas festas juninas, com a crianças vestindo botas e calças com uma perna mais curta que a outra, pintando um dente para parecerem desdentadas, usando palha de milho no bolso da camisa. Mais tarde adota-se a blusa xadrez, uma influência do country americano.
- É por isso que o senhor não se reconheceu naquela festa e foi embora. O próprio homem que inspira a festa, ou seja, o homem simples, ligado à terra e à pesca, não se reconheceu, pois estava com suas melhores roupas para homenagear os santos do mês. Com um cruzamento tão grande de várias influências a festa original perde seu caráter – finaliza Cáscia
Posted by por AMC
on 16:21. Filed under
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