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A propósito da ausência do Presidente da República no adeus a Saramago:

José Saramago em entrevista ao Diário de Notícias, a 9 de Novembro de 2005:

Nunca tive medo de dizer o que penso. Há 48 horas disse que Cavaco Silva é um génio da banalidade e mantenho, da boca dele só saem lugares-comuns. (...) O que hei-de fazer? Não se pode estar de bem com toda a gente e não vou cair na banalidade de dizer que tenho de estar em paz com a minha consciência. Isso é uma banalidade e eu não sou Cavaco Silva. Fico assim.(...) No caso de ganhar Cavaco Silva [as eleições Presidenciais de 2006], não é que não o reconheça. Não se trata disso. Apenas não consigo imaginar este país tendo como presidente da República uma pessoa como Aníbal Cavaco Silva. Custa-me.
(...) Provavelmente não estarei em qualquer evento oficial com ele. Não se esqueça de que Cavaco Silva era primeiro-ministro do Governo que censurou O Evangelho segundo Jesus Cristo e que Cavaco Silva não tem ideia nenhuma do que é a literatura ou a arte. Não sabe nada disso. Também me dirão que para estar à frente de um país não é preciso. Mas tinham-nos habituado à ideia contrária.

Assim sendo, e apesar de ser bem lembrado por Andrea Peniche que:

Cavaco Silva, em Julho de 2008, interrompeu as suas férias para fazer uma comunicação ao país sobre o estatuto político-administrativo dos Açores. Pela voz de um dos seus assessores soubemos «que só uma razão verdadeiramente importante levaria o Presidente a interromper as suas férias».
Cavaco Silva, em Junho de 2010, não interrompe as suas férias para assistir e representar o Estado português no funeral de José Saramago.
A animosidade entre ambos é conhecida: António Sousa Lara, subsecretário da cultura do então Primeiro Ministro Cavaco Silva decidiu, em 1992, e com o apoio deste, afastar «O Evangelho Segundo Jesus Cristo» de um prémio literário europeu. A justificação foi clara: «A obra atacou princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses. Longe de os unir, dividiu-os» e «o livro não representa Portugal nem os portugueses».
Não é por medo do confronto que Cavaco Silva não vem ao funeral de José Saramago. Cavaco é destemido, caso contrário não passaria férias numa região cujo estatuto político-administrativo vetou reiteradamente e que até pôs fim à famigerada cooperação estratégica entre São Bento e Belém.
Cavaco Silva não interrompe as férias porque a sua mediocridade e tacanhez não têm limites.

... tendo a concordar com Luís Aguiar-Conraria:

Vejo os jornalistas escandalizados com a ausência de Cavaco Silva no funeral de Saramago. Uma tempestade num copo de água sem sentido. Se se perguntasse a Saramago se gostaria de ter Cavaco no seu funeral a resposta seria peremptória. Ao não ir, Cavaco limita-se a respeitar o que seria o desejo de Saramago.
Com a excepção de Vasco Graça Moura, não imagino nenhum grande escritor a sentir-se honrado com a presença de Cavaco no seu funeral.

Apesar dos pesares é como Tiago Mota Saraiva diz:

O apelo à presença de Cavaco é um apelo à hipocrisia (...). Na morte de Saramago a representação do Estado foi feita pelo povo, por aquelas pessoas que ostentavam um livro ou um cravo, uma dedicatória obtida numa Feira do Livro e até por aquela senhora que, aos microfones da RTP, dizia que não sabia ler nem escrever mas que Saramago havia escrito coisas lindas.
Pouco me interessa o incómodo de Cavaco, mas sentiria como um insulto à memória de Saramago a sua presença. Cavaco fez muito bem em não estar presente e a sua ausência (tal como a de Jaime Gama) são circunstâncias que prestigiam e dignificam a homenagem.

Acontece que, não obstante, o que resulta, tal como Daniel Oliveira bem resume, é que:

É indiferente se o cidadão Aníbal alguma vez conheceu ou foi amigo de Saramago. É irrelevante o que o político Cavaco sente em relação ao escritor Saramago. Sendo um momento importante para o Estado português, ninguém faria questão que lá estivessem o Aníbal ou o Cavaco. Mas o Presidente da República, esse, nunca poderia faltar à última homenagem ao único prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa. A um dos mais importantes escritores do século XX. Àquele que, com Pessoa, atingiu maior notoriedade internacional. É incoerente decretar dois dias de luto nacional e depois estar ausente da cerimónia oficial.

Posted by por AMC on 10:43. Filed under , , , , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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