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Já nem há dinheiro para tratar dos dentes

Leio em O Público:

No ano passado, realizaram-se mais de 65 mil consultas de medicina dentária, só em Lisboa e no Porto, feitas por alunos nas faculdades, a preços reduzidos. Na Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto, o preço das consultas oscila entre os 15 e os 25 euros. Mas a mesma crise que leva mais gente a estes serviços faz com que muitos comecem a evitar também aqui os tratamentos mais caros.


Nos últimos anos têm-se sucedido as campanhas de sensibilização para a importância da saúde dentária. Tenho assistido perplexa aos spots de rádio, às acções de rua com montagem de tendas em locais públicos e oferta de consulta-diagnóstico gratuita, entre outras iniciativas teoricamente louváveis mas totalmente inconsequentes na prática. O que falha é a assumpção do pressuposto errado: não é por desmazelo que a população deixou de cuidar dos dentes. É por absoluta impossibilidade. A bolsa não chega para a boca, que como quem diz, nunca deu para cuidar de conservar os dentes. Como se fosse assim tão difícil perceber que ninguém tem prazer em acumular cáries e sorrir com dentes estragados. Como se fosse assim tão difícil Ministério e Direcção Geral de Saúde concluírem que sem comparticipação para tratamentos de estomatologia por parte do Serviço Nacional de Saúde, a não ser em casos considerados graves remetidos pelo Médico de Família e que mesmo assim obrigam a meses, senão anos em lista de espera nas consultas dos hospitais, não há nada que se possa fazer. Porque a realidade é que ninguém pode ir roubar ou está disposto a deixar de pagar as despesas fixas do mês para poder fazer tratamentos dentários. Antes da crise, a alternativa eram os famosos seguros de saúde. São inúmeras as pessoas que se dispuseram a pagar uma pequena mensalidade por eles só para terem carta branca para o serviço de um dentista a preços mais acessíveis. Porque fora isso, tratar dentes em Portugal só mesmo no privado onde a primeira consulta ronda, no mínimo, os 100 euros, fora as inevitáveis radiografias panorâmicas requeridas ao diagnóstico inicial e o cheque sempre em branco dos problemas a tratar e das complicações que ao longo do tempo possam surgir. Uma coisa é certa, só o preço para sentar na cadeira nunca é inferior a 50 euros: depois é rezar pelo veredicto do dentista e ir somando à despesa a pagar antes de deixar o consultório.
No meio do desespero, muitas pessoas descobriram que nas faculdades, em troca de pacientes em que os estudantes se possam exercitar, se ofereciam tratamentos à borla. Meia dúzia de anos depois as filas dos interessados eram já quase tão grandes como as outras, com a vantagem de pelo menos não exigirem dinheiro.
Agora, ao que parece, até já aqui a crise chegou: as pessoas continuam a recorrer-lhes, mas abrem mão do conselho dos jovens dentistas se a boca pedir mais do que podem dar. É triste, é muito triste. Sentir na boca e nas próprias gengivas a prova europeia de que pertencemos a um país que se apregoa de primeiro mundo, mas em que há largas décadas não resta outra alternativa senão a de nos irmos entupindo de analgésicos quando alguma dor vem, resignados a ir perdendo os dentes, forçados a deixar apodrecer o sorriso, por ausência de alternativa que nos possa valer.

Posted by por AMC on 16:26. Filed under , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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