|

Entrevista | Leci Brandão, operária do samba


Uma das primeiras mulheres a entrar para uma ala de compositores no machista universo do samba carioca, Leci Brandão tem muita história para contar sobre a sua trajetória e o samba, que conhece desde que se entende por gente. Filha de servente de escola pública, sempre se orgulhou da vida e da educação que teve. Por outro lado, seu pai escutava em casa, além dos sambistas e chorões clássicos, ópera e jazz. Dançou twist e curtiu Elvis Presley, se encantou com a batida de violão de Jorge Ben, além da bossa nova, sobretudo Elis Regina. 
Mas o samba sempre teve primazia em sua trajetória, que completa 35 anos, com mais de 20 discos lançados. Uma das primeiras cantoras a entoar músicas de protesto, Leci Brandão pagou o preço por isso, quando o pessoal da sua então gravadora, a Poligram, sugeriu que alterasse o repertório do LP que lançaria em 1981. Preferiu romper com a gravadora, e voltaria aos discos cinco anos depois.
Na conversa a seguir, a compositora de "Zé do Caroço" fala sobre essas histórias e outras, que detalham a entrada para a ala de compositores da Mangueira; a parceria com Cartola no programa Ensaio, de Fernando Faro, para a TV Cultura, em 1974; as influências; suas letras e o engajamento social que sempre estiveram vinculado ao seu trabalho. Ou melhor, à sua vida. Uma vida que merece respeito e serve de exemplo como uma trajetória a ser seguida e que ela repetiria novamente.
"Faria tudo de novo, não me arrependo de nada. Pelo contrário, tudo que eu fiz me deu alicerces", sintetiza Leci, em mais de 40 minutos de boa conversa. Acompanhe.

Você foi uma das primeiras, senão a primeira mulher, a entrar para a ala de compositores da Mangueira. Como foi isso? 
Leci Brandão. Eu quero começar pelo cordão umbilical. Eu sou neta, filha e afilhada de três mulheres mangueirenses. Minha avó era pastora da Mangueira, minha mãe e minha madrinha também. A gente morava no Morro da Mangueira. Minha afilhada mora lá até hoje. Então, a Mangueira sempre foi uma coisa muito comum na minha família. Tinha um amigo nosso, chamado Zé Branco, que era tesoureiro da ala de compositores. E quem teve a idéia de me levar para a ala foi ele, porque sabia que eu era compositora, que participava de festivais em colégio, e ele resolveu me apresentar lá, isso no ano de 1971. Os compositores se reuniam toda terça-feira numa garagem ali no centro da cidade, na Avenida Passos. Na época, o presidente era o senhor José Bregugério, e ele perguntou o seguinte: “Mas o que essa garota veio fazer aqui?”Aí falei: “Olha, já sou compositora e gostaria de aprender mais nessa universidade”. Já tinha participado de alguns festivais estudantis. “Você faz o seguinte: semana que vem você vem aqui e faz uma carta.” Na terça-feira seguinte eu fui lá com a cartinha. Tinha quase 40 homens nessa reunião, e eles resolveram: “Você vai ficar simbolicamente aqui, vai ter que fazer um estágio. Vai começar a apresentar seu trabalho, seus sambas de terreiro para a gente ver, analisar. E se você passar no final do ano, ano que vem você entra na ala”. Aí entrei na ala em 1972, foi o primeiro ano que desfilei na Mangueira, já na ala de compositores, com a carteira da ala. Passei no teste.

Como foi abrir as portas para as mulheres no universo do samba, tinha muito preconceito? 
Leci Brandão. Na minha época, já tinha Dona Ivone Lara no Império Serrano. E eu não sabia da existência de compositoras em outras escolas. Depois fiquei sabendo da Dona Aidê, que era do Salgueiro, a Giza Nogueira, irmã do João, que foi para a Portela. O que a gente tinha conhecimento eram essas compositoras. Eu cheguei na Mangueira de uma forma muito natural. Fui aceita, cumpria os regulamentos da ala, chegava nos ensaios no horário determinado, ajudava a fazer o livrinho de presença, cantava o samba dos meus companheiros; tinha compositores que faziam sambas belíssimos, mas que não tinham uma voz legal para cantar. Então eu cantava samba de todo mundo lá. Eu era, na verdade, meio crooner na escola. Quando tinha festa, dia de São Sebastião, eu saía uma semana antes, passava nas fábricas de biscoitos, chocolate, para arrumar o café da manhã da nossa festa. Tinha uma grande casa de alimentos na época, onde conseguia feijão, coisas para a feijoada. Então eu estava sempre procurando colaborar como uma integrante da ala de compositores, sem nenhum favorecimento. Tratando todo mundo com muito respeito, muito carinho, mas nunca pedindo que houvesse nenhum comportamento diferenciado pelo fato de ser mulher. Tanto é que eu entro na ala em 1972, e em 1974 eu já estava concorrendo a uma final de samba enredo. Nunca venci samba enredo na Mangueira, mas todas as vezes que concorri fui às finais. Por isso que eu digo que eu sou hexacampeã de vice-campeonato. Porque a maioria dos meus sambas tinha uma conotação política, a maioria voltada para alguma coisa social –acho que a escola de samba também tem que ter esse papel –, mas nunca consegui vencer. Acredito que o fato de eu ter entrado em uma escola tão tradicional, tão antiga, como a Mangueira, evidentemente, deve ter favorecido a entrada de outras mulheres em outras alas de compositores.

Você vai gravar o primeiro LP em 1975, com o Marcus Pereira. Foi o Sergio Cabral que teria te indicado...
Leci Brandão. O Sérgio [Cabral] me viu cantando na Mangueira. A Ligia Santos, filha do Donga, freqüentadora da escola e muita amiga dele, me via cantando nas rodas de samba de lá. Então o Sérgio me conheceu em 1973, cantando lá. Ele me disse o seguinte: “O dia que você quiser gravar, fala para mim”. Mas eu trabalhava, estudava na Gama Filho, enfim. Tanto que, antes do Sérgio, o Jorge Coutinho me convidou para fazer parte da noitada de samba do Teatro Opinião. E aí comecei a entrar no elenco fixo do teatro. Tinha Xangô da Mangueira, conjunto Nosso Samba, um monte de gente cantava lá. E acabei entrando. Depois disso, fui fazer parte de um show que teve em Ipanema, na boate Pujol, o Unidos do Pujol. Tinha Dona Ivone Lara, Roberto Ribeiro, a mãe da Camila Pitanga, Vera Manhãs, um grupo lá de Brás de Pina, chamado Realidade do Samba, e a gente. O show era dirigido pelo Sérgio Cabral e pelo saudoso Albino Pinheiro. E nesse show algumas pessoas prestaram atenção também no meu trabalho. Até que veio o contrato com a Marcus Pereira e, enfim, nós gravamos o primeiro LP em 1975. Mesmo ano em que participo do festival Abertura, da Rede Globo, e fui até as finais. 

Nesse primeiro disco, qual foi o repertório, quem você chamou para gravar? 
Leci Brandão. O primeiro LP teve direção do Zeno Bandeira. Porque, embora o Sérgio Cabral fosse o meu descobridor, na hora que eu fui fazer o LP foi o Zeno. Ele apresentava aquela roda de samba em Vila Isabel, que era uma coisa maravilhosa. E o Zeno chamou o Maestro Ivan Paulo. E nesse LP, me lembro que a base foi feita pelo conjunto Nosso Samba, junto com o Coro das Gatas. E, além das minhas composições, gravei Dedé da Portela, Jorginho Peçanha, do Império Serrano, Suely Costa e Toco, da Mocidade Independente. Me lembro bem desses outros autores, no primeiro LP.

A Marcus Pereira estava lançando, por essa época, os primeiros discos de Cartola. Como é que foi, você já conhecia ele? 
Leci Brandão. Eu já conhecia o Cartola de Mangueira. Tanto que, quando teve o lançamento do Antes que eu volte a ser nada, esse primeiro LP, foi na quadra da Mangueira, com sopa de ervilha feita por Dona Zica e quem cantou lá: Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, todo mundo foi a esse lançamento. Então eu já conhecia o Cartola, porque Dona Zica era freqüentadora da casa de minha madrinha, que morava no morro. Então, Dona Zica me conheceu pequena ainda. Eu me lembro que uma vez o Cartola, numa feijoada, essas coisas de comida que tinham l na casa dele, chegou lá o Candeia, já na cadeira de rodas, estava o Ary do Cavaco, o [José Ramos] Tinhorão, um crítico muito rígido do Jornal do Brasil. Aí as pessoas começaram a cantar e rolou um partido alto. E uma coisa que eu tinha aprendido na Mangueira é que, quando alguém cita o seu nome no partido, você tem que responder. Então, o meu primeiro teste foi lá no quintal da casa do Cartola. E quando teve o lançamento do LP do Cartola, nos fizemos shows juntos, em uma casa chamada Jogral. Teve o Sesc lá de São Paulo, que era um teatro pequeno de arena, fizemos o teatro Payol, em Curitiba, e o teatro da Universidade de Belo Horizonte. Era o Cartola cantando as coisas dele. E isso acabou resultando em um programa do Fernando Faro, chamado Ensaio, que agora, recentemente, a Trama transformou em DVD. Naquele DVD eu não tinha nem gravado o disco ainda. Tava só na coisa da Mangueira.

E como era o Cartola, a convivência com ele?  
Leci Brandão. Muito simples, muito calmo. Na verdade, não tive uma convivência de dia-a-dia com ele. Mas fui uma pessoa que ele elogiou, que reconheceu como uma pessoa que iria contribuir para os compositores da Mangueira. Eu só não tive o privilégio de fazer música com ele. Era uma pessoa muito natural, sabe? Não tinha essa coisa de celebridade, não gosto disso, não quero aquilo, não faço. Aliás, o povo do samba, na sua maioria, é assim. As pessoas não têm nada de excepcional. Todo mundo é normal, come feijão com arroz, se quiser tomar uma cervejinha, toma, se quiser ficar descalço, fica, se quiser andar a pé, anda. E o povo mais antigo, inclusive, era bem mais simples que o povo de hoje. O povo de hoje é muito cheio de manias, é muito folclore. Eu não sou muito chegada a essas coisas não.

As suas letras sempre têm um engajamento, uma questão social. Como se deu essa opção? 
Leci Brandão. A minha própria vida. Sou uma pessoa que vem de uma origem humilde. A primeira música que eu fiz foi por causa de um sentimento amoroso. Mas, a partir do momento que eu me descobri compositora, todos os sofrimentos que passei, as lutas, reivindicações, jogava para as minhas músicas. Haja vista que, bem antes de Mangueira, em 1965, entre o pessoal do Colégio Pedro II, eu tinha uma amiga que morava no Leblon, era da mesma turma. Ela tinha uns amigos ligados a Une, ali na Praia do Flamengo. E a gente fez um show na Une só com músicas politizadas. Foi uma coisa muito legal, essa experiência que tive como compositora. Depois vieram festivais de colégios, participei do festival da Gama Filho. Primeiro festival da Gama foi em 1970 e fui a revelação do festival com o samba que está nesse primeiro LP. Um samba chamado “Cadê Marisa?”, que fala da história de uma passista, que se tornou capa de revista e não quis mais saber da escola de samba. Então a minha vida, o meu cotidiano, de moradora de subúrbio, passageira de trem, operária de fábrica, depois eu fui telefonista, carreguei marmita, enfim. E observando a vida das pessoas com as quais eu convivi, foram surgindo as composições. Porque não toco nenhum instrumento de harmonia – não toco violão, cavaquinho, nada. Deus foi tão bom comigo, que ele já manda letra com a música junto. E só tenho um gravador na mão para não perder o fio melódico, se não é complicado.

Poderia falar sobre a rescisão com a Poligram, em 1981. Foi também o momento da composição de “Zé do Caroço”... 
Leci Brandão. “Zé do Caroço” estava no repertório. Estava na época de fazer um novo trabalho, reservei algumas músicas e levei. Aí, depois de uma reunião, eles disseram para que eu voltasse para casa, tentasse fazer um novo som, pois naquele momento não era aquilo que eles queriam. Naquela época era [Sidney] Magal estourado, Lady Zu, era outra coisa que estava na mídia, não sei te explicar. E aí fui pra casa, fiz uma cartinha de demissão e saí da Poligram. Fiquei cinco anos sem gravadora, e sem gravar.

E como foi, para alguém que é compositora, tinha gravado o primeiro disco há cinco, seis anos, tomar essa decisão? 
Leci Brandão. Fui procurar fazer outros projetos, como os do Sesc, fiz o projeto Seis e meia, participação em shows de movimentos sindicais, movimentos das minorias. Tinha um amigo que dizia que em todas as encrencas brasileiras eu estava envolvida, as pessoas sempre me chamavam para participar dos seus shows. Então eu ia, e sobrevivia fazendo show em tudo quanto era canto. E sem ter gravadora. Aí, quando retornei, em 1985, pela gravadora Copacabana, foi muito bom, porque já tinha passado por essa coisa de não ter empresário, não ter estrutura, não ter nada, mas sobreviver artisticamente. Voltei com outra visão. E nessa segunda gravadora, o dono da Copacabana [Adiel de Carvalho], disse o seguinte: “Quero que você faça exatamente tudo que fazia, só que eu quero que você dê um tratamento de acompanhamento musical um pouco mais simples, para o povão poder entender”. O povo mesmo. Porque eu era cultuada mais pelos intelectuais, pelo pessoal mais elitizado, que gostava da música de protesto. Mas o povo, na verdade, não via, na conseguia enxergar isso, talvez até pela forma com que a minha música era apresentada, muita orquestra, mais sofisticada. Então a gente, com o Alceu Maia, parte para um outro caminho, mais só de violão, cavaquinho, mais pagode de mesa, mesmo. Aí eu me torno uma grande vendedora de discos, discos de ouro, e foi muito bom.

Poderia contar a história de “Zé do Caroço”, que é uma música muito emblemática do seu trabalho? 
Leci Brandão.  “Zé do Caroço” foi uma coisa que Deus mandou para mim. Eu sabia da história dele. Um amigo meu, jornalista, Antonio Claudio, que trabalhava no jornal O Dia, morava na Rua Petrocostino. Eu sabia que tinha um serviço de alto-falante do Zé do Caroço lá no Morro do Pau da Bandeira. Ele falou assim: “Agora você vê: tá morando um militar num prédio lá na Petrocostino. E a mulher dele outro dia foi fazer denúncia na polícia, porque ela quer assistir à novela e o serviço de alto-falante do Zé está atrapalhando a novela dela, um absurdo”. E eu fiquei com essa história na cabeça. Que coisa incrível. E você sabe que essa coisa militar, antigamente, tinha muita força. Essa música foi composta em 1978. Apresentei essa música para a Poligram, para o meu disco de 1981, e ela foi vetada. Compus “Zé do Caroço” dirigindo. Vim fazer alguma coisa na Zona Sul, estava de carro – já morava na Tijuca nessa época – e, quando chegou ali no Leme, na Av. Princesa Isabel, entrando no túnel, veio, né?: “Um serviço de alto-falante...” Fiz a música dirigindo. Quando cheguei na Tijuca, a música já estava pronta. Aí botei no gravador – aquele Panasonic grande, tijolão – para não esquecer. Aí chamei o pessoal da minha banda na época, para a gente poder ajeitar a harmonia direitinho. Embora não saiba tocar, eu digo para o músico o que ele tem que fazer. Se ele não fizer aquilo que está no meu ouvido é uma confusão danada. E toda contente, né? Quando fui apresentar o repertório, “Zé do Caroço” estava lá no bolo. E eles: “Não, a gente não vai gravar essa música, não”. Só fui gravar “Zé do Caroço” em 1985; ela foi feita em 1978. Ou seja, demorou sete anos para ser gravada. Aí foi regravada nos anos 1990 pelo grupo Art Popular, em São Paulo. Depois, pelo grupo Revelação, aqui do Rio, em 2000. Depois regravou Seu Jorge, Mariana Aydar, que me convidou para gravar junto com ela. “Zé do Caroço” começou a entrar em vários CDs, DVDs, tem uma série de regravações. Está sendo levado agora para a Europa, tem um povo lá na Espanha, fazendo a tradução da letra. E tive o prazer também de fazer um show no Teatro João Caetano [na Praça Trandentes, Rio de Janeiro] e levar o Zé do Caroço, o próprio, para ficar no palco na hora que estava cantando a música dele.

Quais foram os grandes nomes que te inspiraram e te inspiram? 
Leci Brandão. Ouvi muita coisa, lá em casa meu pai tinha muitos discos de 78 rotações. A gente ouvia Jamelão, Carmen Costa, Ângela Maria, Alaíde Costa, Ademilde Fonseca, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Bienvenido Granda, um cantor cubano, autor de um bolero chamado “Perfume de gardênia”, que meu pai ouvia 20 vezes por dia. Mas tinha dias em que ele queria ouvir uns discos imensos de ópera de Caruso. De repente, ele comprava discos de Louis Armstrong, ouvia Tommy Dorsey, Peter York, Doris Day. Lá em casa se ouvia um pouquinho de tudo. Porque quem tinha vitrola, dançava dentro de casa. Então o que que era o pagode? Era você botar um monte de disco lá, e todo mundo dançava. Você fazia uma festa em casa, um batizado ou um aniversário de alguém, e as pessoas sabiam dançar de tudo, desde chorinho até foxtrote, era uma loucura. O meu ouvido teve várias informações de tudo isso que escutei. Curti o rock n’ roll, Elvis Presley, dancei twist nas festas do colégio, ouvi Little Richard. Depois veio o calipso, essa onda toda. Eu me lembro que teve um ano em que fiquei em segunda época em uma matéria no colégio e meu pai quebrou todos os meus discos de rock. Falou que eu tinha ficado em segunda época porque estava ouvindo rock demais.
Mas o samba, eu ouvia naturalmente, porque a gente ia pros ensaios da Mangueira – ainda não havia o Palácio do Samba, ela lá na cerâmica – Darcy da Mangueira, Zagaia, Geraldo das Neves, esse povo todo. Então o samba na minha vida era uma coisa muito natural, sabe? Acho que é por isso que as minhas primeiras músicas são sambas. E na Mangueira apreendo uma coisa legal. Porque sempre via todo mundo tocar pandeiro, mas na Mangueira eu vi Zagaia e Padeirinho tocarem perto de mim, e um dia peguei um pandeiro e saí tocando, tanto que toco só partido alto, nenhuma outra coisa. A questão de tocar tantan, já é uma coisa espiritual. Minha mãe freqüentava umbanda e eu via lá os ogans tocando aqueles atabaques, desde pequena. A percussão entra na minha vida de maneira natural, pela família. Por isso que a percussão é muito presente no meu trabalho. Sempre gostei de tudo que tem tambor, tumbadora, atabaque. Fiz uma música chamada “Bate tambor”, lá em São Luís do Maranhão, quando vi uma senhora maranhanse, velhinha, tocando. Acaba influência a minha criação. Porque não me preparo para fazer música. “Vou fazer uma música semana que vem.” Não é assim, ela vem quando menos espero. “Essa tal criatura”, uma das letras mais bonitas da minha carreira, foi do Festival MPB, em 1980. Eu estava tomando banho, no chuveiro, e veio aquilo na minha cabeça: “Tira essa bota/ pisa na terra...”. Saí enrolada na toalha e botei no gravador para não perder a melodia. Porque, como não toco, como é que vai fazer? Isso aí é uma espiritualidade, uma coisa de Deus, a quem agradeço todos os dias, por ter me dado esse dom.
Voltando à sua pergunta. Influências: Jorge Ben foi uma influência, porque me lembro que, em 1965, quando ouvi a batida de violão dele tocando “Mas que nada” eu pirei. Fui pra rua comprar o disco, porque eu falei “O que é isso?”. Foi uma coisa que mexeu muito com a minha emoção, aquele balanço, a forma de fazer música, de cantar. Outro compositor que gosto bastante é Ivan Lins. E quando ouvi essa coisa da bossa nova, a primeira vez que ouvi Elis Regina, também me emocionei, ouço, gosto, cantei muitas músicas do repertório dela, como canto até hoje. Sou muito eclética, estaria sendo hipócrita se dissesse que só ouvia Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola. Eu gostava dos partidos do Padeirinho, de ver o Zagaia versar, de ver a Velha Guarda do Império Serrano quando encontrava a Velha Guarda da Portela. Vi quando Paulinho da Viola lançou “Foi um rio que passou em minha vida”, na quadra da Portela. Eu já rodava no meio das escolas, sempre gostei e assisti os desfiles das escolas de samba, desde pequeninha, quando era na Avenida Presidente Vargas, com corda. Não tinha nem arquibancada. Depois inventaram os cavalos da Polícia Militar para empurrar a gente, mas como nós éramos pequeninhas, ficávamos ali abaixadas. Minha mãe fazia sanduíches, levava laranja descascada na bolsa, para termos o que comer durante a madrugada, mas era maravilhoso. E só fui desfilar em escola de samba, como te falei, em 1972. Mas acompanho esse negócio aí desde pequena, quando as escolas não tinham esse dinheirão todo. Era outra coisa, muito sadia e muito inocente. Cada um fazia sua fantasia, as alas faziam suas festas, piqueniques em Paquetá para arrecadar dinheiro.

Esse ano completa 35 anos da gravação do primeiro LP, mais de 20 álbuns lançados. Como é olhar para trás, rever a trajetória? 
Leci Brandão. Fico muito feliz, porque percebo que nesses últimos dez anos acaba acontecendo o reconhecimento. Já fui chamada até de xiita, as pessoas diziam que eu era muito briguenta, muito contestadora, que só vivia falando da negritude, do pobre, do suburbano, do nordestino, do indígena. Porque eu talvez tenha sido a compositora precursora de protesto nesse país. Falo isso bem tranquilamente, porque comprei muito barulho lá atrás, nos anos 1970. Falei da Amazônia, quando estavam dizimando os índios lá, bem antes, quando ninguém falava em meio ambienta, não tinha o Partido Verde. Do negro, sempre falei, do povo da escola de samba, também. Em 1975, no meu primeiro LP, falo do enriquecimento das escolas de samba, em “Grêmio Recreativo Escola de Samba”, onde já acendo a luz amarela do que poderia acontecer com elas. Talvez tenha sido a primeira pessoa a falar dos gays, em “Ombro amigo”, de uma forma tranqüila, digna. Falei da mulher, dos professores, defendendo a educação. Enfim, peguei vários assuntos polêmicos que me sensibilizaram para fazer música. Mas, na época em que fiz as músicas, muita gente também fechou as portas para mim. Diziam: “Não chama a Leci que vem encrenca. A música dela é muito forte, muito pesada”. Aí, quando encontro o Adiel de Carvalho [dono da gravadora Copacabana], depois de cinco anos sem gravadora, e ele me diz: “Olha, continua cantando as mesmas coisas, mas muda o acompanhamento, os arranjos”, onde coloco os mesmos assuntos com arranjos mais simples, eu começo a ser entendida de uma forma mais ampla. A coisa estava muito gueto. Aí passo a ser aceita pelo Brasil todo e pelo povo mesmo, o povo da favela, do morro. Porque, até então, eram jornalistas, críticos de música, o pessoal que ia para o Teatro Opinião que me cultuavam. E, de repente, a coisa mudou. Nessa mudança, acabo também simplificando um pouco a forma de falar, de compor, e acabo levando um pouco de pancada da turma antiga, que dizia: “Poxa, mas agora a Leci está cantando umas coisas assim, mais simplesinhas”. Só que as pessoas não entendem a minha vida. Elas têm que entender como é a minha sobrevivência, onde é que eu atuo. Porque essa minha música mais simples acaba me dando condições de correr o Brasil, começo a conhecer o país de ponta a ponta e a gravá-lo. Gravo gente do Amazonas, do Pará, do Maranhão, do Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Minas Gerais. Gravei todas regiões, porque me encantei por compositores destes estados.

Faria tudo de novo da maneira que fez, se arrepende de algo? 
Leci Brandão. Não, eu faria tudo de novo, não me arrependo de nada. Pelo contrário, tudo que eu fiz me deu alicerces. Por exemplo, eu não quis saber o que você ia me perguntar. Confio em você, tenho que respeitar a sua profissão, as suas idéias. Porque não tenho rabo preso com ninguém, não tenho medo de responder nada. Ando na rua de cabeça erguida. Eu nunca roubei, cara. Matar, eu não sei. A gente nunca sabe, né?, depende das circunstâncias. Tenho uma vida construída com dignidade, tenho a maior honra de ser filha de uma servente de escola pública, de ter morado em fundos de escola pública, de ter varrido sala de aula, de ter lavado dezenas de banheiros de escola, ter sido operária da fábrica do Realengo, ter carregado marmita. Tudo isso me fortalece, a minha história é de fortalecimento. É uma história de conquistas, mas com dignidade. Nunca passei rasteira em ninguém para subir. Se não puder ajudar um artista, um colega, eu também não atrapalho.


Confira o site da compositora e sambista
Leci Brandão na Saraiva.com.br

Assista à entrevista exclusiva de Leci Brandão ao SaraivaConteúdo



Confira dois momentos do programa Ensaio com Cartola e Leci Brandão, gravado em 1974.
E ainda a compositora com Mariana Aydar, no Circo do Edgar, em 2008, cantando "Zé do Caroço"






Posted by por AMC on 12:33. Filed under , , , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

0 comentários for "Entrevista | Leci Brandão, operária do samba"

Leave a reply