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Índios korubo matam três adultos de outra etnia e raptam duas crianças no Amazonas

por Altino Machado

Em 1996, o sertanisa Sidney Possuelo e um guia matis, que serviu de intérprete no primeiro contato pacífico com os korubo. foto de Ricardo Beliel
Três indígenas da etnia kanamari, sendo dois homens e uma mulher, foram mortos a golpes de bordunas pelos korubo, também conhecidos como “índios caceteiros”, que raptaram duas crianças da mesma etnia na Terra Indígena Vale do Javari, na região do município de Atalaia do Norte, a mais de 1.500 quilômetros de Manaus (AM).
O massacre, conforme relatou com exclusividade ao Blog da Amazônia uma fonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), ocorreu entre a quarta-feira e a quinta da semana passada, no Rio Curuena, tributário do Rio Jutaí, que, por sua vez, é afluente do Solimões, no limite leste da Terra Indígena Vale do Javari, a sudoeste do Estado do Amazonas, região que abrange a fronteira do Brasil com o Peru.
- Apenas uma mulher kanamari escapou desse massacre, porque teve tempo de se lançar no rio, mesmo assim ainda levou uma cacetada voadora antes de cair na água. Os korubo manejam muito bem suas bordunas. São capazes de arremessá-las com precisão contra qualquer alvo – relatou a fonte da Funai.
O massacre foi confirmado nesta quarta-feira (18) pelo sertanista Carlos Travassos, coordenador de Índios Isolados e Recente Contato (CGIIRC) da Funai, em Brasília.
- Recebemos o mesmo relato, transmitido via radiofonia, e estamos agindo com bastante cautela. Estamos esperando pelo relatório do pessoal da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari – disse Travassos.
Um antropólogo e um sertanista consultados pelo Blog da Amazônia alertaram que a morte de três adultos e o rapto de duas crianças podem levar os kanamari, povo há muito tempo contatado e que manuseia armas de fogo, a se organizarem para retaliar os korubo.
É a primeira vez que se relata que os korubo tenham matado indígenas na região. Quando se deslocam, os kanamari passam pela área onde vivem os os korubo. Os kanamari vinham estabelecendo contatos com os korubo, o que incluia a oferta de presentes.
- Numa situação como essa, os índios não fazem planejamento estratégico nem contratam gestor de crise. Eles decidem se vingar, cada um pega um bocado de farinha, se embrenham na mata e partem para vingar os parentes – comentou o sertanista.
Os korubo habitam a região de confluência dos rios Ituí e Itaquaí, no vale do Javari. Mais de 200 pessoas dessa população ainda vive isolada, movimentando-se entre os rios Ituí, Coari e Branco.
Em 1996, após várias tentativas, o sertanista Sydney Possuelo Funai contatou um pequeno grupo de índios Korubo, que começaram a realizar visitas sucessivas às aldeias dos índios matis e aos acampamentos Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari. Uma expedição anterior, realizada 10 anos antes, fora massacrada pelos korubo.
O encontro de funcionários da Funai com os "índios caceteiros" ocorreu sem incidentes nos primeiros dias, mas um membro da expedição foi morto a golpes de borduna pelos korubo, na beira do rio Itaquaí.
Mapa da Terra Indígena do Vale do Javari (clique para ampliar)
Além dos korubo e de outros grupos isolados, na Terra Indígena Vale do Javari existem sete etnias – kanamari, kulina pano, kulina arawá, marubo, matis, matsés (mayoruna) e um pequeno grupo chamado tsohom djapá – que estabelecem diferentes relações de contato com a sociedade nacional.
De acordo com a publicação "Povos Índígenas no Brasil", da ONG Instituto Sociambiental, a região formada pela Terra Indígena Javari e pelas áreas banhadas pelos rios Manu e Purus, no Peru, é o lugar onde há o maior número de índios isolados do mundo.

No Brasil, há 82 referências de grupos indígenas não-contatados, das quais 32 foram confirmadas. No lado do Peru, existem quatro reservas territoriais reconhecidas e três propostas aguardando o reconhecimento por parte do Estado peruano.
A Funai atua na proteção e identificação de índios isolados por meio da sua CGIIRC e de 12 Frentes de Proteção Etnoambiental, localizadas nos estados do Mato Grosso (2), Maranhão (1), Pará (2), Amazonas (3), Acre (1), Rondônia (2), e Roraima (1).

NOTA DA FUNAI (atualização às 18h37)

Prezado Altino Machado,

Encaminho, a pedido do Coordenador-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai, nota a respeito de matéria publicada hoje em seu blog.
Nota sobre conflito na região leste da Terra Indígena Vale do Javari
Na última terça-feira, 17, a Frente de Proteção Etnoambiental da Funai no Vale do Javari  recebeu notícias de um conflito envolvendo um povo de índios isolados e indígenas da etnia Kanamari, na região leste da Terra Indígena Vale do Javari. A Frente de Proteção enviou uma equipe ao local onde teria ocorrido o referido conflito para averiguar as informações. Somente após essa averiguação a Funai se pronunciará a respeito

Att,
Ana Heloisa d'Arcanchy B. de Mello
Ascom-Funai

[ANTECEDENTES]

Frente de Proteção preocupada com destino dos índios isolados no Vale do Javari (AM) 
Base da Frente de Proteção Etno-ambiental Vale do Javari (AM)
Mais de 20 lideranças das etnias marubo, matis e kanamari estarão reunidas nos próximos dois dias na base da Frente de Proteção Etno-ambiental Vale do Javari (AM), na fronteira com o Peru, para discutir relações de compartilhamento de territórios contíguos e estratégias de proteção dos índios isolados e de contato recente na região.
Segundo relatório da Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII) da Funai, a necessidade de realizar a reunião ocorreu após a Frente de Proteção ter constatado diversas tentativas de alguns povos contatados, que habitam o interior da TI Vale do Javari, de estabelecerem o contato com os índios isolados korubo.
Também conhecidos como “índios caceteiros”, por causa de suas bordunas que já foram usadas para matar várias pessoas, os korubo vivem na região de confluência dos rios Ituí e Itaquaí, no vale do Javari. A maior parte dessa população ainda vive em isolamento.
Na verdade não existem informações do quadro demográfico da população korubo, mas informações acerca do número de moradias das últimas três décadas. Segundo a Funai, elas evidenciam que eles conseguiram sobreviver à voracidade dos surtos econômicos e ao ímpeto dos exploradores.
De acordo com relato dos indigenistas, nos últimos cinco anos os korubo têm adotado diversas estratégias para se proteger. Reocuparam áreas de seu território tradicional, o que é considerado um sinal de que querem evitar o contato. Isso deixa claro também que as ameaças não são externas aos limites da terra demarcada.
- Acreditamos que, entre os vários fatores que colocam em risco a sobrevivência física dos korubo, os principais sejam a intensificação dos contatos inter-étnicos e a supressão dos territórios dos isolados – afirma relatório da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai.
São inúmeras as evidências do processo de ocupação da terra imemorial korubo, entre elas os registros de campo efetuados e os relatos de contatos por parte de indígenas e não-indígenas. Nos últimos anos, o fluxo de indígenas para a cidade de Atalaia do Norte (AM) se intensificou em decorrência da maior interação dos grupos indígenas com a cidade.
- Soma-se a essa interação a busca por benefícios sociais, como aposentadorias e outros, que por sua vez dão aos indígenas maior capacidade aquisitiva, para a compra de motores fluviais e de combustível. Ao realizar este fluxo, exploram os lagos dessa região para a subsistência e até mesmo para a exploração de recursos naturais de forma predatória, com fins comerciais – acrescenta a Coordenação Geral de Índios Isolados e a Frente de Proteção Etno-ambiental Vale do Javari.
Dezenas de acampamentos temporários foram estabelecidos ao longo do rio Itaquaí, nas regiões mais nobres em termos de caça e pesca e em plena área do grupo isolado. Os acampamentos temporários passam a permanentes, pois quando um grupo está saindo outro está chegando.
- Essas permanências podem trazer conseqüências graves, sendo que a mais preocupante é a propagação das moléstias infecciosas e vetoriais, tais como a gripe, malária e filariose. Ao mesmo tempo, a Funasa tem se mostrado incapaz de conduzir o atendimento à saúde indígena no Vale do Javari e essa deficiência repercute em altas taxas de morbidade e no completo descontrole sanitário. Se a população circunvizinha aos isolados está doente e essa população se comporta de maneira inapropriada, certamente os índios Korubo isolados sofrerão as conseqüências dessas ações, seja devido à precariedade da atuação do Estado, seja pela postura dos indígenas de contato perene – adverte a Funai.
Para  a Coordenação Geral de Índios Isolados e a Frente de Proteção Etno-ambiental, de nada adianta salvaguardar os isolados das ameaças externas, quando na realidade o que pode estar consumindo suas vidas são os comportamentos e atitudes internas ao limite da Terra Indígena. Estes são os resultados de uma série de situações ocasionadas principalmente pela falta de uma política de Estado para o compartilhamento de territórios entre índios de contato permanente e isolados, bem como pela precariedade da saúde dos índios da TI Vale do Javari.
- Esta situação resulta e continuará resultando em conflito, a menos que os órgãos responsáveis adotem medidas definidas, coerentes e eficazes e que haja uma mudança de atitude das populações indígenas de contato perene e circunvizinhas aos grupos isolados. Esperamos que esta reunião seja um primeiro passo nessa direção.
Os indigenistas esperam que o evento possibilite maior compreensão dos motivos (e sua geopolítica) que levam os índios contatados a desejarem fazer o contato com os índios isolados, bem como debater com eles os riscos à sobrevivência física e cultural desses povos.
Nesse sentido, objetivo da reunião é observar as causas de intensificação dos contatos inter-étnicos nas calhas dos rios Ituí e Itaquaí, levantar as diversas visões sobre a questão, principalmente dos indígenas contatados envolvidos nesses contatos. É possível que surjam diretrizes para nortear as relações entre índios contatados e não-contatados.
Serão apresentadas alternativas de subsistência para os índios contatados, que permitam  reduzir a pressão sobre os índios isolados, além de estabelecidas normas de conduta que minimizem os problemas oriundos dos contatos inter-étnicos. Na mesma reunião serão discutidas o aprimoramento da vigilância e proteção territorial da TI Vale do Javari.
A reunião no Vale do Javari é organizado pela Diretoria de Assistência (DAS), Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII) e pela Frente de Proteção Etno-ambiental Vale do Javari (FPEVJ) da Fundação Nacional do Índio (Funai). O evento conta com o apoio da Administração Regional de Atalaia do Norte e do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), que coopera com as ações da CGII por meio do Projeto de Proteção Etno-Ambiental dos Índios Isolados da Amazônia Brasileira, apoiado pela USAID, uma agência independente do governo dos Estados Unidos.

Relatório da Funai expõe contexto conflagrado
Índios korubo na década dos 1970. foto da Funai
Os primeiros registros de resistência dos índios Korubo no século XX à exploração de suas terras são encontrados nos anos 1920. Nesse período, é registrado o primeiro conflito dos korubo com caucheiros peruanos e índios tikuna no interior do Rio Branco, resultando na morte de vários indígenas habitantes nas proximidades desse último rio. Três décadas mais tarde, o Vale do Javari, em especial o interflúvio dos rios Ituí e Itaquaí, torna-se um verdadeiro palco de sangrentas lutas travadas entre os exploradores e os korubo, com baixas em ambos os lados. É provável que outros conflitos tenham ocorrido entre os anos 1930 e 1960.
Os conflitos de que se tem registro eclodiram com maior intensidade a partir da década de sessenta e se avolumaram ainda mais nas duas décadas seguintes, ocorrendo nesse espaço de tempo cerca de meia centena de embates sangrentos. No entanto, as estatísticas só eram registradas fidedignamente quando havia baixas do lado dos não índios, enquanto na outra parte as informações estão guardadas apenas na memória dos seus carnífices e dos cúmplices destes. Dessa forma, os registros oficiais expressam uma visão parcial da saga desse povo que, em defesa de seu território e de seus integrantes, corajosamente enfrentou os diferentes surtos econômicos do século passado.
Um detalhe ilustrativo dessa questão é o fato de que, considerando o grupo contatado em 1996, quase um terço da população tinha fragmentos de chumbo espalhados pelo corpo, marcas do período de conflito. Uma funcionária da Funai que trabalhava no PIN Massapê, na década de 70, relata que chegou a ver mais de trinta corpos de índios Korubo, de uma só vez, em uma praia do Itaquaí, pouco abaixo da boca do rio Branco.
Antes dos anos noventa, os Korubo eram vistos com freqüência nas praias do Itaquaí e do Ituí. Os vestígios eram fartos nessa região, principalmente nas épocas de estiagem e no período da desova do “bicho de casco”. Além disso, nessas estações do ano, os índios eram também atraídos para a beira dos rios maiores para a prática da pesca do poraquê, muito abundante nas “camboas” que ficam ao longo das áreas alagadiças, permitindo assim a obtenção de grande quantidade desse peixe (que é muito importante para a dieta alimentar do grupo). Não é exagero dizer que, para defender esses recursos e os espaços que os guardavam, centenas de vidas foram sacrificadas.
Os sucessivos massacres e conflitos obrigaram os Korubo a se recolherem para o interior da mata, deixando raros vestígios nas margens dos rios, como nos mostra o fato de que nenhuma visualização foi registrada pelos indígenas, navegantes, exploradores e trabalhadores dos órgãos indigenistas oficiais entre o final de 1989 e meados de 2005. A partir de então, os Korubo voltaram a ocupar as margens dos rios, sendo avistados por índios Matis no rio Ituí em junho de 2005.
No ano seguinte voltaram a ser avistados, também no Itaquaí, por indígenas Kanamari e por outras embarcações da Funai e Funasa que navegavam naquele rio. Assim, passaram a ser avistados regularmente nas praias de ambos os rios no decorrer do período de estiagem de 2006 e 2007. Em 2008, mesmo no período de chuva e com os rios cheios, os indígenas foram avistados no rio Itaquaí, na altura do antigo PIA Marubo, nos meses de janeiro/fevereiro. Em maio, voltaram a sair no mesmo rio, nas imediações da Volta da Curica, sendo avistados por equipes da Funasa. Por volta desse mesmo período, os Kanamari efetuaram, num espaço de trinta a quarenta dias, pelo menos cinco contatos com o grupo.
Houve então a emergência de uma nova realidade: a aparição dos índios em épocas atípicas. Diante desse contexto, a Frente de Proteção Etno-Ambiental Vale do Javari se preparou para maiores e alongadas incidências desses contatos no período de estiagem, porém essa expectativa não se cumpriu: em todo o período de desova do “bicho de casco”, os indígenas, ou vestígios destes, não foram encontrados no Ituí ou no Itaquaí. Só voltaram a aparecer no Itaquaí no final de setembro e no mês seguinte, no Ituí.
Quando os Korubo voltaram a aparecer no rio Itaquaí, a Frente deslocou uma equipe para a região onde ocorreram os contatos recentes, com a finalidade de evitar que outras aproximações fossem concretizadas com os Korubo. Outro propósito consistia em procurar estabelecer uma comunicação com os isolados, procurando convencê-los a não se aproximarem das canoas, caso contrário poderiam contrair doenças que os levariam à morte. Assim, assessorados pelo lingüista da UnB, Sanderson Castro Oliveira, e indígenas Matis, tivemos a oportunidade de conversar, à distância, com um grupo de cinco Korubo e cumprir o objetivo daquele trabalho. Nesse momento, tivemos a infeliz oportunidade de registrar a índia Sini chorando a morte de sua neta.
Em agosto de 1982, o indigenista Pedro Coelho, sobrevoando o interflúvio dos rios Ituí e Itaquaí, localizou 9 malocas de índios Korubo, sendo que apenas uma estava desabitada. Depois de muitas horas de sobrevôo, realizados entre os anos de 2000 e 2007, foram registradas pela FPEVJ apenas três moradias de Korubo, sendo uma maloca localizada em um afluente da margem esquerda do baixo rio Branco, uma outra nas cabeceiras do rio Novo (igarapé abaixo da boca do rio Coari) e a última nas cabeceiras do igarapé Tronqueira. No último mês de novembro, realizamos mais três horas e meia de vôo nessa região, quando se verificou que apenas a maloca do rio Novo continuava habitada. A do igarapé Tronqueira está caída e sem sinais aparente de ocupação e a do afluente do rio Branco estava em desuso ainda no final de 2002.

por Altino Machado (2009.06.03)

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