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"Os dois Egitos"

por Clara Ferreira Alves

As revoluções são perigosas quando se reduzem a um instante sentimental. A televisão é o reino do sentimento e do sentimento sem teoria e sem moral, tornando-nos cúmplices emocionais do homem que chora a morte do amigo ou da turba que grita por liberdade, emprego, uma vida melhor. Eles têm razão em querer uma vida melhor mas uma vida melhor não é algo que se obtenha de um dia para o outro. É um processo e antes de ser um processo é uma transição com chefias, programas, organizações, alguém que harmonize e modere as ideologias e o desespero. Uma revolução sem pragmatismo descamba noutra ditadura.
Hosni Mubarak, um Presidente que como todos os presidentes depois de Nasser, começou por se definir no resultado das guerras com Israel, recolheu os frutos da paz assinada por Anwar al-Sadat e que lhe custou a vida. No primeiro consulado, este homem-forte da Força Aérea, respeitado na hierarquia militar e que parecia não querer o poder, era considerado um parceiro estável e moderado. E dedicou-se a fortalecer a economia. Apesar de minado pela corrupção, o Egito modernizou-se, criou infraestruturas, ganhou prosperidade. Pareceu esquecer a humilhação infligida por Israel. Com o tempo, Mubarak eternizou-se e transformou o regime numa ditadura pura e dura, preocupada com a sobrevivência da oligarquia, perseguindo, exterminando ou corrompendo a oposição. O islamismo crescia em proporção, monopolizando a resistência. Nascida a Irmandade Islâmica, um dos movimentos extremistas mais secretos do mundo e a matriz do terrorismo contemporâneo, esta tornou-se o inimigo principal. Al-Zawahiri vem daqui, e a Al-Qaeda também. Said Qutb (executado por Nasser) e Hassan al-Banna (assassinado), dois intelectuais resistentes, foram os pais teóricos do extremismo islâmico e do jihadismo, os seus fundadores e primeiros 'mártires'. A sua influência radical vai do Egito ao Afeganistão, da Argélia ao Iémen, da Jordânia à Indonésia.
Sem o Egito secular e elitista e sem a esclarecida burguesia dos cafés do Cairo e Alexandria, a Irmandade Islâmica, com o seu credo antiocidental e antijudaico não teria nascido (o clã Zawahiri é dos mais ilustres). O Egito é dois Egitos, uma elite ocidentalizada, com forças armadas treinadas nas academias norte-americanas mais os capitalistas que o regime transformou numa oligarquia, e o Egito pobre e miserável, aquartelado nos subúrbios das grandes cidades, sobretudo o Cairo e Alexandria. Este Egito esteve sempre escondido como um embaraço dos olhos dos ocidentais e dos turistas acidentais que desembarcam para ver as pirâmides e os templos e nunca se aventuram pelas ruelas perdidas do Velho Cairo ou da Cidade dos Mortos fora dos circuitos. Pelos arrabaldes de tijolo, lata, adobe e pó que cercam a cidade num abraço mortal. Num desses lugares existem egípcios que vivem do lixo e no lixo, o lixo é a sua casa e o seu modo de vida. Esta gente destituída, arredada da educação e dos postos de trabalho ou usada como escrava nos postos turísticos do Mar Vermelho, permaneceu silenciosa e invisível. Nos campos verdes do oásis de Fayoum ou do delta do Nilo, camponeses, fellayn, vergados como no tempo dos faraós, cumpriam tarefas agrícolas à mão, como se o tempo não tivesse passado. A modernidade não chegou e a prosperidade também não.
A Irmandade Islâmica (apesar das fações, das lutas e dos desvios e leituras do Corão, da corrupção e da aliciação pelo regime) foi organizando este descontentamento a seu favor, apesar de o Egito, pela sua história e pela sua geografia, ser o maior dos países árabes que diz que não é árabe, é faraó. Faraós muçulmanos. Árabes são os beduínos, as tribos da areia. Entre a fome e a repressão, a Irmandade foi acudindo socialmente, recrutando. Não se sabe o seu poder real. Mubarak ia sendo sustentado ao ritmo de 1300 milhões de dólares por ano pelo amigo americano. A paz no Médio Oriente sai caríssima.
Qualquer transição no Egito terá de ter a Irmandade Islâmica no meio, como um pedregulho no salão, e Israel sabe isto melhor do que ninguém. Dizem que é minoritária, talvez, nas ruas civilizadas do Cairo. A situação no Egito é potencialmente explosiva. Não me parece que o cosmopolita Baradei consiga ser o homem-forte que os egípcios querem e provavelmente precisam e sempre tiveram, desde Ramsés. Do pan-arabismo e nacionalismo de Nasser à Irmandade percorreu-se um caminho, com os militares vigiando. Neles repousa a responsabilidade da ordem, e a americanização dos oficiais é favorável à transição. Mubarak, com a sua feroz perseguição e liquidação de extremistas e moderados, criou vácuo político e ignorância ideológica. A casa de Mubarak cai. E isto começa por ser um instante sentimental de alegria. Um instante que muda todo o Médio Oriente.

* publicado na revista Única de 5 de Fevereiro de 2011

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