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"São coisas portuguesas com certeza"


"São coisas portuguesas com certeza": uma reportagem da Fernanda Câncio, no Diário de Notícias de hoje. Começa assim:

Postais, cerâmicas, azulejos, filigranas,  trajes regionais, vinho do Porto, 'T-shirts' de CR7 e, claro, galos de Barcelos.  Portugal sortido, aos bocadinhos.
 

Requerdos, ricordi, gifts, souvenirs, andenken, gava. A dona do painel de azulejo azul e branco abre a boca de espanto quando lhe certificam que a palavra espanhola não se escreve assim, mas com um "C". Sai da loja, e mira a tabuleta. "Palavra de honra, nunca tinha reparado. Foi o senhor a quem encomendei que escolheu as palavras, nem sei que língua é gava e andenken. E o senhor, coitado, já se foi..." Abana a cabeça, divertida.
Maria Isabel Cata rino, 61 anos, meteu-se a comerciante há mais de 20. Começou com uma papelaria na esquina da rua Augusto Rosa, no centro do percurso turístico Castelo-Baixa (abaixo da Cerca Moura e um pouco acima da Sé), transmutou-a em oferta de souvenirs e, entusiasmada (agora menos, "com esta crise"), expandiu o negócio para o espaço ao lado. Três montras sobretudo com cerâmicas em que as peças das Caldas imperam. "Ainda agora vendi uma terrina destas [aponta para um tomate muito encarnado de tamanho médio] mas a senhora veio cá namorá-la três vezes, tive de lhe fazer um desconto de dez euros." É também a favorita dela - mais um prato girassol. Coisas coloridas, redondas, a condizer com a disposição de Maria Isabel, que afirma com bravata trabalhar "de domingo a domingo" e não ter férias "há mais de cinco anos". "Não gosto dessa coisa dos coitadinhos, gosto de trabalhar." Antes numa empresa "que fazia coisas para aviões", depois, desempregada, investindo a indemnização num negócio. Isto tudo, frisa, casada com "um marido com esclerose múltipla". Vai lá dentro, às traseiras da loja, e volta com um risco nos olhos para a foto. "Com este calor, o lápis derreteu. Estou borrada!" A rir, segura no prato girassol, ilumina-se para a pose. À saída, aponta os buracos no passeio que, daqui até à Sé, chega a ser mais buracos que passeio. "Estamos fartos de ligar para a Câmara e para a Junta e nada. Os turistas caem aqui que nem tordos, isto é incrível."
Entre os buracos, os desníveis e a lisura ringue de patinagem da calçada lisboeta agravada pela zona a pique, não dar um tombo é milagre, mas não só para os turistas. Um risco mais entre o cerco dos carteiristas que na zona do Castelo se esmeram no disfarce (misturando-se com os grupos de saco ao ombro e cara de quem visita "muito bem postos", conta uma lojista), a sauna tropical deste Agosto e a possibilidade de gastar um rio de dinheiro em pechisbeques para lembrança. Às portas do Castelo, na Rua Chão da Feira, o corrupio de gente para cima e para baixo acena prosperidade a Manuela Pardal, 68 anos, proprietária do Bazar do João, no nº 28. No tempo do avô, era uma retrosaria. Foi o pai de Manuela que iniciou a senda do artesanato - "Muito poucas coisas" - e ela, quando tomou o testemunho, há trinta anos, assumiu-a em pleno. "Não gosto de ter o que os outros têm. Gosto de ter o que não têm, mas, claro, há coisas impossíveis. Julgo que na zona não há quem tenha um sortido tão grande de louça do século XVII e XV." Cópias, evidentemente, em desenhos azuis miúdos sobre branco, a chamada "louça de Coimbra". Não será o que se vende mais, claro: "T-shirts, postais... E agora estamos na novidade das malas de cortiça." Clientes? "Este é o mês dos franceses e da criançada. O mês passado foi o dos brasileiros. E o de Setembro é o dos mais velhos, gente com mais posses." São os três meses que lhe permitem, "viver no Inverno", quando as vendas caem a pique. "Vende-se sempre alguma coisinha, mas muito pouco."
Apesar de querer ter "coisas diferentes", deixou há algum tempo de viajar à procura delas; são os fornecedores que vêm procurá-la e propor-lhe as peças, com grandes dificuldades, alega, devido ao sistema de trânsito condicionado do bairro. "Dificulta muito". Sim, mas como seria antes, quando as ruas estavam atravancadas de carros? Mais protestos: "Já viu o preço para entrar no castelo? Sete euros por pessoa! Uma exorbitância. E se tivessem melhorado alguma coisa, mas não. É só para ver a vista, não há lá mais nada. Como é que depois os turistas têm dinheiro para comprar alguma coisa?" Não será exactamente pela penúria que daí resulta, mas o Bazar do João acumula outros prejuízos. "Sabe lá, é preciso estar com olhos em tudo. Estão sempre a roubar. Ímanes e porta-chaves e coisitas pequenas, claro, sobretudo. Mas já me roubaram uma caravela deste tamanho [afasta as mãos quase meio metro] e, ainda hoje estou para perceber como, uma terrina."
Na loja 2 Rosas (que se lê "dois rosas", em alusão aos dois irmãos, Armando e João, que a fundaram há 30 anos), o que se apostou em número de empregados/vigilantes poupou-se no conforto. Apesar da óbvia prosperidade - é capaz de ser o lugar com mais turistas por metro quadrado de Lisboa e o tipo de produto não faz concessões ao Made in China - o ar condicionado não chegou ainda. Maria do Céu Caçador, a empregada mais antiga (53 anos, há 14 aqui), justifica com as regras da Câmara, que não deixa colocar "aqueles aparelhos lá fora" e posiciona-se para a entrevista junto da ventoinha, parando a cada três minutos para receber dinheiro de clientes, na maioria a comprar postais sépia de um Portugal de bêbados em becos, meninos do rio em cuecas e varinas calcinadas - bonitos porém ou por isso mesmo. Aberta todos os dias menos o de Natal, a 2 Rosas vende sobretudo "artesanato do Norte" e o que tinha de mais dispendioso, os bordados da Madeira, está a sair de stock. "Ninguém compra", sentencia Maria do Céu, cuja patroa está "de férias" e "não pode ser contactada". Num manequim, na montra, um traje completo de Viana do Castelo: feltro, lã e bordados, muito encarnado e preto, uma estufa só de olhar. Do lenço de 23,70€ à saia de 135€, passando pela camisa de 55, o avental de 75 e o bolso de 45, e a terminar no amoroso colete/bustier de 82.50. "Compram às vezes", responde a funcionária à pergunta óbvia. "Mas o que se vende mais são os vestidos de criança [uns vestidinhos que nada têm de "tradicional", em algodão colorido e peitilhos bordados, mas que são, assegura, "artesanais"] e as T-shirts". I Love Portugal, e tal. O hit da parada, porém, é mesmo o galo de Barcelos, cuja lenda, uma história bizarra que mete um galego erradamente acusado de uns crimes ocorridos na Barcelos do século XVI e um galo assado que canta na mesa de almoço do juiz que o condenou, está disponível em várias línguas para consulta. "Antes de vir trabalhar para isto, há 20 anos (antes de estar aqui estive numa loja do aeroporto), também sabia lá a lenda." É a sua peça favorita. "A minha patroa diz que sou casada com o galo de Barcelos. Mas eu tenho marido!"
Galos de Barcelos: não há loja que os não tenha. Pequenos, minúsculos, médios, grandes, verdadeiros (cerâmica pintada à mão algures em Portugal) e falsos (chineses) - seja lá isso o que for, verdadeiro ou falso, num galo de Barcelos. Caros e baratos, em bibelô ou porta chaves, saca rolhas ou cartas de jogar, todas as declinações imagináveis de um ícone. "o símbolo de Portugal", diz alguém. Ah é? Numa loja sem nome entre a Graça e a Cerca Moura, um corredor de quinquilharia lembrança, eléctricos de lata e loiça, T-shirts de Ronaldo, jarrinhas e jarretas, canecas e chávenas, puzzle colorido onde o olhar vagueia, assolapado, há quem não faça a mínima ideia do significado ou simbolismo do galito. Atrás do balcãozito, Faysal Hossain e Sajid Khan, 20 e 19 anos, sorriem aquele sorriso confuso, cuidadoso, que é marca cultural de uma certa Ásia. Estão em Portugal há meses e mal falam português, apesar de o patrão, que começou por ser um compatriota, ser agora cidadão nacional. O inglês também não é famoso. As coisas resolvem-se à base de boa vontade e gestos. "Não vamos ter problemas, pois não?" Oriundos de Daca (capital do seu país), adiantam que estão encantados com Lisboa. Porque "há menos gente" e "o tempo é muito bom" - mesmo se, concedem, está um calor dos diabos. O medo não obsta à foto, com pose e galos simbólicos. "É um galo, sabemos o que quer dizer galo. Mas Barcelos?"
Faysal e Sajid são de certo modo responsáveis pela pergunta feita a Muhammad Aquil - "De onde é?" "Nasci cá", responde ele. "Quer dizer, é como se tivesse nascido, vim para cá, de Moçambique, com nove meses". Muhammad, que tem 33 anos e menciona de passagem falar "oito ou nove línguas" é, com a família, proprietário de três lojas "para turistas" na Rua de Santo António à Sé. A primeira loja e maior, onde ele está, existe há 18 anos. A seguir expandiram para a tabacaria do tio, ao lado, e de seguida para o espaço que era de um restaurante, na esquina abaixo. A oferta é sobretudo miúda e barata, amontoada sob as luzes de frigorífico, embora Muham- mad, como todos os outros comerciantes abordados, puxe a brasa ao seu critério: "Os nossos fornecedores são maioritariamente portugueses, o que nos diferencia de outras lojas". Exemplifica o esforço com o atelier de azulejos e "pintura ao vivo" que criou na porta ao lado e que acabou por fechar, por falta de "artistas de qualidade", apontando pequenos ímanes de azulejo azul e branco que "sobraram" da aventura.
Diferença: a pequena loja no número cinco da Rua Augusto Rosa, um espaço cuidado com uma tabuleta intrigante: Aldeias do Xisto. Chão de laje original, luz agradável, cerâmicas, sacos, lenços de namorados (ponto cruz colorido sobre linho com quadras e erros de ortografia) sabonetes de autor em embalagens retro, jóias. Uma americana paga e dá os parabéns: "Têm uma loja muito bonita!" Augusto Martins Fernandes, 67 anos, garante que toda a gente diz o mesmo. "O mundo inteiro passa aqui. Às vezes digo que a nossa loja é o centro do mundo." Um dossier de imprensa atesta o sucesso. "Uma vez apareceu aqui um senhor que me disse que tinha lido sobre nós numa revista alemã. Imagine. Isto espalha-se." A funcionar há quatro anos, a Aldeias do Xisto, cujo design e logo são da autoria do filho de Augusto e Maria Fernanda Martins - que com o marido faz o atendimento da loja- foi criada com o objectivo de se associar ao projecto das aldeias do mesmo nome, "um projecto de desenvolvimento da região que inclui exposições de artesãos". O casal começou por pensar uma cadeia de lojas franchisadas, mas desistiu, apesar de garantir: "Do sucesso, graças a Deus, não nos podemos queixar."
Bem mais abaixo, já na Bai- xa, junto à igreja da Madalena, num espaço que já foi loja de tintas e depois de decoração, Ezequiel Vieira, 50 anos, fez da mon- tra larga uma insta- lação cuidada. Ganha o prémio da melhor da reportagem: galos de Barcelos estiliza- dos (há até um com cara de Pessoa nas prateleiras), um eléctricocom a Sé em fundo, e o nome da casa, amatudo, assim, com minúsculas, como em letra corrida à mão: "Era um nome que estava disponível e gostámos" - o nós inclui a mulher e a empregada, Natércia Amaro, e uma certa decepção, a de um nome assim, tão certo para o conceito, ser de catálogo.
Lá dentro, de latas de conserva e frascos de flor de sal e compo- tas aos móveis antigos que servem de expositores à cadeira de bar- beiro verde água forrada a veludo carmim, tudo está à venda. Do negócio da restauração para isto que se chama, quê, lembranças?, Ezequiel fez uma secante a vários universos neste comércio que o apanhou "num ano sabático": "O espaço estava a vagar [a tal loja de decoração desistiu] e aproveitei." Ao fim de um ano e um mês, ainda não percebeu se está a correr bem. Mas parece confortável: "É capaz de funcionar. Vendemos um pouco de tu-do o que temos: artesanato de barro, santos antónios, galos de Barcelos... Talvez o que se venda pior são as malas [aponta um expositor de sacos tipo reciclagem]." Tem, adianta, "uma pessoa de família que trabalha no ramo das antiguidades", o que propicia as peças de época. Não serão o mais vendável aos turistas, mas já aconteceu, garan- te. "Daqueles relógios de madeira antigos, por exemplo, já vendi a estrangeiros, é relativamente fácil de transportar". Quanto às outras coisas, tanto se podem comprar no supermercado (latas de atum Tenório em azeite, por exemplo, custam menos de um euro em qualquer sítio, mas aqui têm o valor acrescentado do contexto e do "objecto de design") como a fornecedores ou correndo as feiras de artesanato. "Vou ao máximo possível de feiras. Há muito poucas lojas com artesanato português. Há essas lojas que vendem recordações e nem tudo são coisas portuguesas." Ora essa. Então não?

Posted by por AMC on 09:51. Filed under , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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