«Miguel Real: Um 'Leopardo' dos tempos modernos »
por Cláudia de Sousa Dias
O escritor Miguel Real (autor de A Voz da Terra, O último Minuto na vida de S.; A Ministra; A morte de Portugal, Memórias de Branca Dias) esteve no passado sábado dia 19 de Junho na biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão para comentar o filme"O Leopardo" do realizador italiano Luchino Visconti, baseado na obra de G. Tomasi di Lampedusa.
Miguel Real, para além de escritor, é também professor de Filosofia e comentador de temas da actualidade no programa de rádio "Um certo olhar" da Antena2, juntamente com Maria João Seixas (actual directora da Cinemateca Portuguesa).
O filme, um clássico do cinema italiano, aborda a questão das transformações históricas e culturais relacionadas com a unificação da Itália no século XIX e o polémico tema da circulação das élites. São 178 minutos de película, marcada pela beleza estética e caracterização social do mundo em vias de extinção.
Miguel Real comentava que hoje em dia “O tempo do Leopardos já passou. Hoje estamos no tempo dos Chacais e das Hienas.”
Os dois arquétipos a que se refere, estão presentes no texto de Lampedusa que serviu de base ao filme aludindo ao modelo de análise social de Vilfredo Paretto, sociólogo italiano e aristocrata do século XIX, que defendia que os movimentos de circulação das elites pressupunham a luta pelo poder de ambas estas facções pela supremacia.
A frase chave, presente no livro e no filme “É preciso mudar para que tudo fique na mesma”, encerra, segundo Miguel Real, “um conteúdo subversivo”, uma vez que contraria a ideia defendida pelo Positivismo e pelo Iluminismo de que a Europa se desenvolve seguindo uma linha contínua em direcção ao progresso ou “em direcção à Luz”. A frase-chave do filme desmente essa ideia.
O Filme não implica uma oposição entre “Luz e trevas” ou entre dois pólos, mas transmite a ideia de que a História em si é uma sucessão de círculos concêntricos que se expandem indefinidamente. Materialmente, o homem melhora cada vez mais, mas o Homem é sempre o mesmo: ou é um Leão, ou é um Chacal. É um ‘homem sem qualidades’ (a firma, aludindo ao escritor Robert Musil). Na época em que se passa a história, vigora a ideia ou Teoria Jesuítica de que os melhores de cada geração venceriam sempre, seriam eles os predadores – os Leões (no topo da cadeia alimentar) – aos quais bastava rugir para aterrorizar. Agora domina o arquétipo oposto – as Hienas e os Chacais (ocupam a posição imediatamente a seguir na cadeia alimentar, representando a burguesia, a alta finança ou o poder financeiro).
Don Caloggero é quem representa esta casta no filme de Visconti . Segundo as palavras de Miguel Real “ é o Homem que troca os valores por dinheiro. Para ele tudo é mercadoria”.
As famílias como as de Don Caloggero são aquelas que em face a uma oportunidade conjuntural que arruinou as elites de longa data ascenderam ao topo da escala social pelo casamento. É assim que o príncipe e escritor Giuseppe Tomasi di Lampedusa explica a ascensão das famílias da Máfia Siciliana durante os anos que se seguem aos desenrolar dos acontecimentos em O Leopardo.
Para o Autor, hoje os Leopardos quase não existem. Dominam os chacais, um arquétipo que se ajusta ao pensamento do Homem Americano dos dias de hoje que é aquele que vive do interesse, das especulações, que explode o mercado financeiro, mas os seus interesses ficam salvaguardados. Ou então, o Alemão dos dias de hoje. Já o Alemão do século XIX seria um Leopardo. O Príncipe de Salina, o protagonista da obra é o Alemão do século XIX, interessado nas Artes e nas Ciências.
Mas mais desconcertante é a analogia que faz com Friedrich Nietzsche para analisar a psique colectiva do homem Lusitano de hoje: o Português dos nossos dias não tem, a malícia para ser Chacal, nem a força de para ser Leão ou Leopardo. Nietzsche introduz outra figura arquetípica que se adequa ao modelo de comportamento colectivo português: o Camelo.
“É o animal que aguenta tudo. O Português é o Camelo. Foi demasiado reprimido para ser Chacal. Por outro lado, o tempo do Leopardo já passou também para nós; desapareceu com Alcácer-Quibir. O camelo aguenta tudo, através do deserto, com a passada sempre igual, caminhando até à morte. E, quando morre é de exaustão. Depois de morto, tudo no camelo é aproveitado, desde a pele até ao sangue. Quando cai sobre as patas dianteiras, já não se levanta. . E, quando morre é de exaustão, depois de caminhar em direcção ao nada”.
E prossegue: O tempo dos Leopardos aplica-se à Grécia Clássica, a Roma (período da república), a Portugal (até Alcácer-Quibir), ao Império Vitoriano. O que não quer dizer que não encontremos Leopardos entre os Zulus, ou numa lojinha de secos e molhados em Buenos Aires.. Para eles, a palavra é que é importante. Fazem negócios através do aperto de mão. Não há a malícia do mercado.
Falou-se, ainda, da estética barroca, dos contrastes entre a paisagem verdejante e a dureza do horizonte de onde domina o Etna, da exuberância da cor a irradiar o calor infernal da canícula siciliana, das personagens, do modelo de família e do conceito de sexualidade, da sacralização do poder, dos vestígios do Antigo Regime, das propriedades que mudam de mãos. Mudam para outro tipo de elites.
“É preciso mudar para tudo fique na mesma”.
Conseguiremos?