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Que coisa é essa que nos move por uma causa?

Tropecei casualmente nessa entrevista feita por Luiza Caires, em 2008, à activista do CMI, Miryám Hess.
A conversa integra uma investigação académica, realizada no âmbito de um mestrado na Escola de Comunicações e Artes da USP, com vista a traçar o perfil dos activistas que actuam no núcleo brasileiro do CMI, Centro de Mídia Independente.
Lê-la fez-me sorrir, recordou-me nódulos de afinidades, pequenas tangentes, alguns paralelos e simetrias, certos cortes e agulhas, momentos passados, inúmeras experiências cruzadas, umas próprias, outras de pessoas com que me cruzo ou cruzei, mas sobretudo avivou-me à mente curiosidades, dúvidas e perguntas com que frequentemente me confrontam.
A dada altura, em nota da entrevistadora que acompanha o diálogo, recordando a tarde seca de Julho e a rouquidão que tomara conta da voz da sua entrevistada, Luiza escreve assim: «passei duas horas e meia conversando, na tentativa de entender o mundo que ela vê».
Exactamente porque creio não ser outra a função de uma entrevista – tentar entender e oferecer ao entendimento o mundo que os outros vêem – deixo-a transcrita na integra, aqui no Conexão, disponível à leitura de quem se interessar. Basta clicar sobre o link abaixo para expansão do texto.


Entrevista com a activista Miryám Hess


Qual sua profissão Miryám?
Sou funcionária pública. Trabalho como geóloga, especialista em desenvolvimento urbano, aqui na Subprefeitura do Butantã.

Quais são suas áreas de atuação principais nos movimentos sociais?
Eu atuo em direitos humanos e em questões étnico-raciais há mais de 20 anos, sou Promotora Legal Popular e atuo mais dedicada nas lutas indígenas, através da Rede GRUMIN de Mulheres Indígenas, e nas lutas camponesas, apoiando a Via Campesina e o MST.

Que tipo de ações você faz nestes grupos?
No GRUMIN eu faço representações que vão para a Presidência da República, para o Ministério Público. Muitas das petições e documentos sou eu que redijo. Por ser Promotora Legal Popular e ter contato com a parte de direitos humanos, tenho algum conhecimento jurídico que me permite isso. Participo de eventos e conferências representando o movimento indígena, e também aciono as autoridades, repassando denúncias de graves violações de direitos humanos, não apenas de indígenas, mas de outros grupos.

Como você conheceu o CMI e começou sua participação?
É engraçado que eu não me lembro de como eu conheci o CMI, mas me lembro muito bem de 2001, de quando eu já estava lá dentro do coletivo, da gente atuando em conjunto, eu e um árabe. Foi um trabalho muito sério, de ir ao front de guerra e conseguir salvar vidas, da maneira mais rudimentar possível.
Tenho duas fases no CMI. A primeira foi esta em que eu entrei e atuei muito na questão da guerra, lá no Oriente Médio e a gente conseguia realmente salvar vidas. Foi um trabalho muito importante porque, enquanto o Estado de Israel bloqueava toda a imprensa e até mesmo a imprensa alternativa, nós conseguíamos ter acesso a informações através da forma mais humilde possível: a vítima se comunicava em árabe com o CMI Jerusalém, lá era traduzido para o inglês e do inglês para os demais idiomas. Em duas horas tínhamos aqui no Brasil em português o que a vítima havia declarado por celular em árabe. Então, neste período de duas horas, tínhamos aqui notícias que eram segredo de Estado. Com isso, a gente conseguia ter um movimento de ação em defesa da população civil que salvou muitas vidas – não todas que gostaríamos, mas foi um trabalho seríssimo este de ir ao front de guerra e fazer uma mídia alternativa.


Marcha Regional da Vida (2005)

Fiquei afastada do CMI por seis anos e voltei recentemente pela ocasião de um ato no Ibama onde encontrei um voluntário do CMI. Então retomei o contato e acabei voltando. Na verdade, eu já estava com este projeto de retornar porque precisamos de canais alternativos para divulgar as lutas indígenas. A mídia “pilantra” mente muito sobre a questão indígena, incitando ódio contra os povos indígenas, racismo, xenofobia. Dá versões totalmente distorcidas. Na imensidão dos latifúndios, as milícias oficiais e as dos latifundiários se confundem; existem muitos indígenas trabalhando em situação de escravidão nos latifúndios, existem torturas contra as pessoas camponesas. E na grande imprensa, os paramilitares que estão estuprando e torturando passam como pessoas de bem, e indígenas passam como criminosos.
No movimento indígena, temos uma rede em que as lideranças das próprias comunidades vítimas entram em contato por telefone, ou por e-mail, quando sabem escrever em português e têm acesso aos equipamentos. Então isto vai para a lista de contatos do movimento indígena e entramos com representações, acionamos o Ministério Público, e sempre que possível divulgamos também no Exterior. Estou pleiteando também um espaço específico no Centro de Mídia Independente para a cobertura das questões indígenas, porque as violações de direitos humanos estão cada vez mais graves com o avanço do neoliberalismo.
Em uma palestra do Arbex na USP, ele estava ridicularizando o fato de o governo Bush chamar os índios de terroristas. No intervalo o chamei de lado e disse: Arbex, não ria não, porque a coisa é séria. Eles sentem mesmo os indígenas como ameaça. Se você parar para pensar, o modo de vida indígena é sim uma alternativa ao modo de vida no sistema capitalista. E eles têm uma luta anticapitalista muito consistente, desde Chiapas – e veio depois Oaxaca, para mostrar que eu não estava mentindo.

Você se lembra de um exemplo de matéria com estes problemas que você apontou anteriormente?
Temos vários, você pega, por exemplo, toda a cobertura sobre a questão de Raposa Serra do Sol, que você vê claramente. Foi comentado até no Observatório da Imprensa. Inventam que os arrozeiros estavam lá há muito tempo, sendo que, na verdade, esta já era uma terra indígena demarcada.

Tivemos um ato com a participação do jurista Dalmo de Abreu Dalari e da Dra. Deborah Duprat em que foram listadas as mentiras ditas no caso Raposa Serra do Sol, em defesa dos arrozeiros, que na verdade poluem, degradam o meio ambiente, ameaçam os indígenas, os atacam e queimam as malocas – e nada disso a grande imprensa mostra. Na revista Veja só se encontram matérias dando a versão dos arrozeiros. A verdade não costuma ser expressa na grande mídia, o que fez com que as lideranças da terra indígena Raposa Serra do Sol fossem ao Exterior, clamando por auxílio da União Européia e da ONU. Então, no Indymedia, temos que fazer este contraponto.

Outro exemplo é a cobertura feita pela grande mídia sobre o Santuário dos Pajés, na qual índios foram chamados de “ex-índios”– coisa que não existe. O próprio Governo de Brasília acusa-os de grileiros de terras, de oportunistas, invasores de terras públicas. Todavia, aquelas são terras indígenas ancestrais, onde se supõe que as escavações arqueológicas possam dar indícios mais seguros do Peyabiru, caminho que ligava o Atlântico ao Pacífico nas rotas pré-colombianas. No Indymedia, vemos os indígenas em vários vídeos fazendo rituais. São povos que, como costumo lembrar, estão em situação de genocídio cultural e físico há 515 anos aqui no Continente (Abyá-Yala).

Além de atuar no GRUMIN, costumo trazer estas problemáticas para o CMI, avisando sobre situações graves de que fico sabendo, levando pautas para a Lista do CMI, escrevendo textos. Não faço parte do coletivo editorial, apesar de ter interesse em fazer. Quando escrevo, publico na coluna da direita, como qualquer pessoa que entra lá.

Por que você não participa do coletivo editorial?
Na verdade eu não tenho acesso direto, e quando quero mandar alguma pauta para os editoriais eu passo para outro voluntário, que tem acesso a esta Lista, e fico aguardando o aval. Quando eu voltei para o CMI, fui entendida como uma pessoa nova, pois boa parte dos que me conheciam de 2001, que eram do meu tempo, não estavam mais lá, estavam envolvidos em outras atividades. A lista editorial não é aberta diretamente para todos, é preciso um tempo para ser aceito/a.

Você acha que mesmo dentro da mídia alternativa há uma concentração maior em alguns temas do que em outros?
Sim. O coletivo aqui de São Paulo, por exemplo, é formado por uma equipe muito pequena e que trabalha mais a questão de moradia. Quando eu cheguei, ninguém tinha muita familiaridade com a questão indígena. Tinha apenas uma pessoa que dava notícias nesta área e eu comecei a dar outras mais amplas e o pessoal achou legal. Eles não tinham contato nem com as lideranças da cidade de São Paulo de Piratininga, como a cacique Jandira e os caciques Timóteo Verá e Popyguá.

Como você entrou em contato com esta temática, isto é, o que te despertou para a questão indígena?
Foi da maneira mais dramática possível. Quando eu era criança, eu era vizinha de uma índia que era daquelas vitimas de genocídio pelo próprio Estado Brasileiro, que catava pessoas a laço. Elas eram laçadas como gado, retiradas da sua comunidade e trazidas à força para a cidade. Na época ela tinha cerca de 75 anos de idade e eu cinco. Em Santo Amaro, onde eu morava, todos tinham uma série de restrições a ela; não queriam que nos aproximássemos dela, coisas assim. Ela era alcoólatra pela violência que sofreu e era tratada como louca. Eu sou uma testemunha viva que pode dar este depoimento: conheci uma das vítimas indígenas que foi caçada a laço.
Acho interessante que durante muitos anos eu me esqueci dela, pois ela morreu quando eu era muito pequena. Então, na época em que eu estava fazendo meu mestrado, lá pelo terceiro ano, eu me lembrei claramente daquela figura olhando para mim, eu como criança. Aos catorze anos me marcou também uma ocasião em que um europeu virou para mim e perguntou se índio era gente. Eu virei para ele e perguntei se ele era gente, e ele não me respondeu, e morreu sem responder.
Além da questão indígena eu sempre chamo a atenção para a situação das questões negra, cigana, árabe, e judaica, que são muito graves também. Até hoje ciganos, judeus, negros são mortos por causa da sua condição étnica, então não é dizer que não é uma situação grave. Mas considero a situação indígena ainda mais grave, pois se chega ao ponto de se questionar se índios são humanos até hoje. E não estou brincando, não. Lembro-me de uma matéria antiga que li, e na época fiquei tão chocada que joguei o jornal fora. Hoje vejo que deveria ter guardado. Era um genocida de indígenas que dizia que, quando ele promovia seus assassinatos, “as fêmeas choravam e se grudavam nas crias como se fossem gente”.





11o Grito Nacional dos Excluídos (em solidariedade ao Santuário dos Pajés)

O CMI congrega vários movimentos e temáticas. Você apóia todas elas ou tem restrições a alguma?
Eu sou originária de dois movimentos: o de direitos humanos e o ambientalista. Fiz parte do Greenpeace e de outras ONGs ambientais. Só que eu saí do movimento ambientalista porque, em geral, os/as participantes são muito despolitizados/as. Então se colocam a falar contra pessoas pobres em geral, sobretudo acusando os indígenas de cometerem crimes ambientais - e daí meu “racha” com o movimento ambientalista de foco eurocêntrico/etnocêntrico. Você tem que saber exatamente quem degrada o meio ambiente e, ao contrário do que se pensa, os ricos degradam muito mais do que os pobres.
No meu mestrado no Instituto de Eletrotécnica e Energia, discorri justamente sobre isto. A Unesco e outras entidades estão ensinando uma coisa errada por aí, que é atrelar o índice de qualidade de vida (IDH) ao alto consumo de energia per capita, que é a quantidade de energia gasta pelas pessoas. E o que pesquiso é uma inversão disto: quanto mais se gasta energia, menor é a qualidade de vida, por conta do estresse, da poluição, entre outros danos graves à saúde. Até mesmo a iluminação que utilizamos é excessiva, e isso estressa o organismo. Na época, foi uma coisa bem polêmica levar a Escola de Frankfurt e o questionamento do “desenvolvimento” e da “neutralidade da ciência” para a discussão acadêmica na USP, no âmbito da Poli. Na minha pesquisa eu questiono: “Desenvolvimento para quem, cara pálida?”
Então, voltando, eu não aceito este discurso de alguns ambientalistas de que os indígenas destroem o meio ambiente. Ainda discuto as questões ambientais, mas desde que elas sejam embasadas em parâmetros de biogeoquímica que determinam a sustentabilidade ambiental. Quando começa um discurso truncado de que “índio é problema para parque”, eu paro e digo: “Não. Desculpe, mas o parque é que é problema para índio, porque os parques são demarcados em terras indígenas” . Existe, em geral a sobreposição das terras indígenas em áreas ambientalmente preservadas, e os indígenas sempre perdem nos tombamentos ambientais de uso restrito.

Você citou alguns grupos com posturas bem radicais. No âmbito dos movimentos sociais você também encontra pessoas com estas posições muito dogmáticas?
Sim, encontramos bastante. No Brasil, há um ódio muito grande contra a cultura judaica. Este ódio veio dos portugueses e é fortíssimo. Até dois anos atrás você ouvia falar “morte aos judeus!” na avenida Paulista, na República do Líbano, na porta da Hebraica. Eu mesma cheguei a passar por uma tentativa de estrangulamento por ser judia, numa manifestação pela paz no Oriente Médio. Um indivíduo, que acha que a solução para paz no Oriente Médio é matar judeus, começou a por em prática isso lá na Praça da Sé, naquela ocasião. Como a judia que estava exposta era eu, fui o primeiro alvo. E nada aconteceu com ele, não foi preso, não aconteceu absolutamente nada com o agressor.
No próprio CMI, por causa da liberdade para publicar e da permissão de anonimato, estamos com um problema que é a presença de nazistas que estão usando o site como “parque de diversões” para a publicação de conteúdos racistas.
Em outra ocasião, eu usava uma camiseta com a bandeira de Israel junto da bandeira da Palestina, e discutia sobre assuntos do Oriente Médio na Rua da Consolação, na quadra da CIP, com uma amiga de ascendência judia, quando um nazista chegou e me empurrou com um golpe de ombro que me fez dobrar a coluna, e eu quase bati a cabeça na guia. Por pouco não estaria aqui hoje conversando com você (risos).

Com essas experiências que teve, você pensou algum momento em se afastar do ativismo?
Machuca né, você fica combalida. Eu sofri reações de anti-semitismo no grupo anterior do CMI. Não era todo o grupo nem era a maioria, mas eu fiquei muito machucada e saí. O brasileiro tem esse problema de, quando lida com a questão do Oriente Médio, colocar o árabe como “coitadinho” e o judeu como “monstrinho” – e não é assim. Tem radicais dos dois lados, baixarias como morte de crianças, dos dois lados. Se você fosse uma judia morando num kibutz, sem fazer mal para ninguém, e esfaqueassem e matassem seus filhos e você, daria para perguntar: será que todos os árabes são tão bonzinhos assim? Ou então o pessoal que não tem conhecimento e defende, sem saber, os califados, a alta burguesia – que os próprio povo árabe fala: “pelo amor de Allah, não defendam nossos opressores!” Existe terrorismo dos dois lados, e mesmo que o terrorismo de Estado seja muito mais condenável do que o de grupos e indivíduos, e que a população palestina seja muito mais atingida, não dá para dizer que a população civil de nenhum dos lados tenha que conviver com o terrorismo, seja ele de Estado, grupos ou pessoas.
Teve um fato hilário que aconteceu naquele debate sobre a questão do Oriente Médio no Sintusp. A Federação Israelita Paulista que ia, na última hora não quis comparecer. A Direção do Sintusp, que me conhece, chamou-me para falar na Mesa, e fui enquanto comunidade judaica. A minha fala foi uma fala de tentativa de conciliação, num local onde estavam presentes membros dos partidos como PSTU, além da Federação Árabe Palestina, e do próprio Sintusp. Havia pessoas que apoiavam um levante das massas árabes para exterminar seis milhões de judeus israelenses! E mesmo assim consegui fazer uma fala conciliatória, levando a problemática indígena, negra, pedindo para o pessoal, por exemplo, olhar a questão da Colômbia, que não é menos grave do que a dos territórios ocupados, para as pessoas sendo exterminadas pela etnia em vários locais. Isto ocorre em todo o Planeta: no Tibet, no Timor Leste, e por aí vai. Sem polarizar o discurso, ou tratar os territórios palestinos como único caso do Planeta. Consegui a vitória de, não defendo a destruição de Israel, não ser vaiada. Embora, para deixar explícito, em longo prazo eu defenda a “destruição” de todos os Estados. Mas, no presente, por que destruir só Israel? Isto é anti-semitismo – por que os brasileiros ficam querendo destruir um Estado que está em outro continente e não se movem para “destruir” o Estado Brasileiro também? Coloquei estas questões na Mesa, e eu, judia, no término do debate estaca sendo abraçada por um libanês – em plena guerra do Líbano! – o que para mim é uma vitória.

O que mais te realiza nestes trabalhos?
Eu sou uma pessoa voltada para as políticas públicas, e é no ativismo que posso desenvolver isto. Estudei durante 16 anos em universidades públicas, gratuitas, financiadas pela Sociedade e almejo devolver para a Sociedade esta riqueza que me foi propiciada. É o que eu tento, inclusive, no mestrado.

Nos meios institucionais você acha que isto não é possível?
A gente, como funcionária pública não tem espaço. No meu caso, tenho que ficar “de boca fechada”, não posso falar nada em nome da Subprefeitura. Isto não tem nada a ver com este ou aquele partido, trata-se da norma da Empresa e está atrelada ao Estatuto do Funcionário Público, que é da época da ditadura militar e está em vigor, com pequenas alterações, até os dias de hoje.

Eles sabem da sua ligação com os movimentos?
Sim, até porque eu tenho que avisar algumas vezes quando vou a algum evento, em que participe Governo e Sociedade Civil, para deixar evidente que não estou falando em nome do Governo, mas em nome de uma das organizações que participo.

Com seus colegas de trabalho, você conversa sobre estes temas?
Não... Geralmente não rola (risos).

Politicamente você se define como?
Eu sou anarquista, com uma certa tendência anarco-punk, só que eu não adoto o visual americanizado de alguns punks que usam coisas muito sintéticas e industrializadas. Eu assumo um visual indígena, enquanto anarquismo mesmo. São ações afirmativas que despertam a identidade indígena nas pessoas que olham os adereços indígenas que eu uso. De certo modo, a roupa que você usa é sua segunda pele, e você coloca sua ideologia política nela. Pensando assim, a forma como eu me visto é, em si, uma ação anticapitalista.

Você tem religião?
Eu sou Xamã. Participei também de religiões Afro, mas como no Candomblé eu teria que sacrificar animais – e isso não faço – para dar continuidade, então acabei saindo.




4a Marcha da Consciência Negra (2007)

Reparei que tem bastante gente vegetariana no CMI. Você é?

Carne eu não como de jeito nenhum, mas sem ser vegana, pois como derivados de leite e ovos das galinhas que crio. Mas lá tem bastante gente vegana, sim.

E há alguma restrição do grupo em relação a quem come carne?
Olha, se tem eu não sei – eu nunca vi. É tudo normal. O máximo que aconteceu foi eu levar uns pães de queijo para o pessoal comer porque não sabia, e alguns não quererem, pois tinha queijo e os/as veganos/as não comem.


Queria te perguntar da relação da tecnologia com a comunicação nos movimentos sociais. Você acha que as coisas estão mais fáceis agora, como os relatos que você fez das comunicações por celular, por e-mail, etc?
Faz muita diferença, como nos casos que relatei, do uso do celular pelas vítimas do bombardeio, impedidas de se comunicar pelo Estado de Israel. A tecnologia na mão de povos em situação de genocídio físico e cultural pode ser usada como socorro, e para fazer denúncias de violações graves de direitos humanos.

Você vê a Internet como um divisor de águas na articulação destes grupos?
Olha, vou te dizer que a gente sempre deu um jeito enquanto “imprensa alternativa”. Lembro de um jornal levado pela ECA, pelo pessoal do Oboré e o Serjão [Sergio Gomes], que era afixado na USP, cada número de uma cor para verem que não era o mesmo. Eles tinham estratégias de se encontrar, em plena ditadura militar, arriscando a vida. Se você pega a Inconfidência Mineira, por exemplo, também tinham ações na “imprensa clandestina”. Se você for até a África, você tem os tambores rufando e anunciando os inimigos; e, em Abya-Yala tinha os sinais de fumaça. Então a humanidade sempre dá um jeito de se comunicar. Mas a Internet ajuda bastante sim. Quando o Arafat foi preso, por exemplo, foi pelo site do CMI que fiquei sabendo que não estavam dando um remédio que ele precisava tomar todo dia. Então eu fiz uma carta enviada por e-mail para várias embaixadas, inclusive a de Israel, dizendo que se o paciente (Arafat) tivesse a medicação cortada ele poderia morrer e quem seria responsável pela morte de Arafat seria o Estado de Israel. Sei que logo depois voltaram a dar o remédio a ele – não tenho como provar que foi em razão da divulgação da notícia e destes e-mails que enviamos, mas o Arafat não ficou mais sem a medicação.

E dentro da crítica da mídia tradicional, não alternativa, você vê algum caminho possível?
Há vários. Existem articulações muito interessantes, como o Observatório da Imprensa. E há outros caminhos de atuação, a exemplo do que vem sendo trilhado pelo Intervozes, Oboré e o Portal Gens.
Mas, no meu entender, é preciso ir mais além do que a simples reforma do sistema de “latifúndio das mídias”, com suas concessões de rádio e TV vencidas e que continuam nas mãos dos mesmos. A partir da Lei de Terras (1850), legaliza-se o latifúndio da terra. E assim começa o “latifúndio da grande mídia”, que passa a pertencer aos mesmos donos dos latifúndios da terra, criando uma retroalimentação de poderes econômicos, sociais e midiáticos. Então, a questão fundiária se desdobra, até porque muitos dos donos das redes de mídia são também latifundiários e políticos, e isso se perpetua desde 1850 até os dias atuais, este é o cenário político que explica, por exemplo, a atuação do Congresso Nacional e o estranho comportamento do Ministério das Comunicações.
Outro fator que devemos levar em conta é que a Lei de Terras (1850) inviabilizou o processo de libertação de indígenas (1590) e afrodescendentes (1888). Isto ocorre porque a libertação de uma pessoa escrava requer, necessariamente, o acesso à terra para agricultura de subsistência. Por isto, nós que lidamos com as questões étnico-raciais afirmamos que se encontra inconcluso o processo de libertação de indígenas, desde 1590, e afrodescendentes, desde 1888. Logo, não há como desatrelar a Lei de Terras do racismo institucional, e de toda injustiça social que dele emana. Então, são três tipos de “reforma agrária” que defendo: da terra, das mídias e do saber dentro das universidades, porque todos eles, no caso do Brasil, caracterizam-se pelo eurocentrismo e pelo etnocentrismo.

Quais são seus planos para o futuro?
No CMI eu pretendo que a presença indígena seja mais forte, que tenhamos um espaço dedicado à causa indígena. E estou preparando meu projeto de doutorado em Antropologia.


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Nota da entrevistadora:
Essa entrevista é parte de uma pesquisa de mestrado para a Escola de Comunicações e Artes da USP, que trata do perfil dos ativistas que atuam no Centro de Mídia Independente – Brasil.
Nossa entrevistada, Miryám Hess, do CMI-SP, é uma personagem desafiadora ao padrão do “comum” que os preconceitos desenham em nossas mentes. Uma judia que defende tanto o respeito a seus pares de ascendência quanto aos povos árabes; que se apresenta com tendências políticas anarquistas, mas prefere adotar um visual inspirado nos nossos indígenas; que trabalha oito horas por dia numa repartição pública e ainda encontra tempo e disposição para militar pelos direitos humanos de diversas etnias – várias, inclusive, das quais nem faz parte. Que se coloca radicalmente contra os valores da sociedade de consumo e contra as injustiças que este sistema produz. Que com mestrado concluído e doutorado em vista, não vê nenhum problema em levar uma vida simples, morando na favela e criando galinhas – não para comer, pois é vegetariana.
Foi com ela rouca pela gripe, num fim de tarde seco de julho, que passei duas horas e meia conversando, na tentativa de entender o mundo que ela vê.
Posso afirmar que foi uma experiência extremamente elucidativa para mim, que abri meus horizontes para assuntos novos, sensibilizando-me para causas que nem conhecia.
Fiquei ainda mais convencida da importância de veículos de mídia alternativa como o CMI, que trazem ao público assuntos que a imprensa comercial despreza, trata com muito pouco caso, ou cobre enviesadamente – dando um retrato pouco fiel do que constitui a luta dos grupos marginalizados.

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