Memórias de 30 anos de luta pelos direitos GLBT em Portugal
foto: Nuno Ferreira Santos
Da descriminalização da homossexualidade em Portugal até à recente legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo passaram quase 30 anos.
Este fim-de-semana, dois textos que vale a pena ler por se complementarem na tentativa de um breviário histórico dos caminhos entretanto percorridos. O primeiro é um artigo de Nuno Miguel Ropio, publicado na edição de hoje do Jornal de Notícias, em que se dá voz a Ana Cristina Santos, figura que marca a história do movimento LGBT português, observadora atenta e activista dos direitos sexuais, com longa produção ao nível da reflexão crítica académica. O segundo é um texto da Fernanda Câncio que desce a memória aos começos da década de 90, e em que se recordam pessoas determinantes na luta pela não discriminação e direitos dos homossexuais, como Gonçalo Dinis, o primeiro presidente da associação GLBT Ilga Portugal, e Sérgio Vitorino, postado no Jugular.
Deixo ambos disponíveis à leitura integral, aqui no Conexão. Basta clicar no link abaixo para expansão do texto.
A longa marcha dos direitos homossexuais
"Liberdade para os homossexuais". Com umas letras garrafais, rabiscadas num tímido cartaz, as mulheres e os homens que representavam aqueles que, pelo menos desde o século XIX, foram oprimidos em Portugal pela sua orientação sexual, diziam ao que iam nas comemorações do 1º de Maio, no Porto, em 1974. O sonho estava lá, mas os ventos da Revolução dos Cravos apenas bafejariam aquela população mais de oito anos depois, com a discriminalização da homossexualidade.
Desde então, até à recente promulgação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, passaram 28 longos anos, tempo para que uma hegemonia heterossexual fosse cedendo a conta-gotas direitos básicos de cidadania às minorias sexuais. Cenário estranho num país que, a 5 de Julho de 1852, se tornava num dos primeiros no mundo a deixar de punir criminalmente os homossexuais. Ainda que para três décadas depois revogar tal decisão.
Se excluirmos o espírito comparativista a que sempre se submete e se, na aldeia global, se considerar somente a sua caminhada, Portugal acorda tarde para o direito à diferença e a igualdade de género. Preso a uma moral fortemente católica, pintalgada por uma das mais duradouras ditaduras da Europa no século XX, lá foi aprovando diplomas de protecção jurídica por imposição de directivas comunitárias e dos efeitos da visibilidade de um movimento LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgénero] emergente, que saiu à rua pela primeira vez em 2000, numa 'Marcha de Orgulho', em Lisboa.
É esta longa caminhada que, com a socióloga Ana Cristina Santos, investigadora do Instituto Birkbeck de Pesquisa Social, da Universidade de Londres, se retrata de forma cronológica nas páginas seguintes.
Duas décadas fora do armário mas com 'recato'
Na senda da revisão constitucional de 12 Agosto de 1982, que pôs termo ao Conselho de Revolução, 42 dias depois os homossexuais viram um decreto-lei abrir caminho para algo que um artigo centenário do Código Penal (CP) impedia: "direito à reserva da vida íntima". Caiam, assim, as medidas de segurança que podiam ir até ao internamento. Mas a revisão do CP deixava claro que orientação sexual era para ser "exercida em recato" e diferenciava as penalizações para homossexuais e heterossexuais que tivessem actos sexuais com menores, incorrendo os primeiros em penas mais pesadas.
A igualdade de direitos estabelecida pela Constituição de 1976 não era transversal. Falar de movimento LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgénero] era incipiente. Destaque-se o Colectivo de Homossexuais Revolucionários, do actor João Grosso, que durou um ano, tanto tempo quanto o Gay Internacional Rights, fundado em Braga. Outras tentativas de visibilidade acabaram por ser abafadas.
"Alguns que tinham sido alvo de perseguição política pelo regime pensaram que seriam beneficiados pelo poder político. Tal não se verificou. Após o 25 de Abril, o general Galvão de Melo, do Conselho de Revolução, alerta que a revolução não se fez para prostitutas e homossexuais, reagindo ao manifesto do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária", explica Ana Cristina Santos, autora, entre outras obras, de "A lei do desejo", análise extensa sobre direitos humanos e minorias sexuais.
E está marchada a década de 80: inócua e longe da difusão das acções que movimentos LGBT iam realizando em Inglaterra ou França. No campo legislativo o arranque da década seguinte também nada trouxe. Exceptuou-se a consolidação do activismo.
Homossexuais 'incomodavam' Guterres
Nome de guerreira: "Organa". A primeira revista para a população homossexual origina uma outra - "Lilás" - e está na génese do Clube Safo, em 1996, de onde desponta Fabíola Cardoso, activista que passa a movimentar-se na praça pública. Nasce o Grupo de Trabalho Homossexual dentro do Partido Socialista Revolucionário [hoje Bloco de Esquerda] e a revista "Korpus". A Opus Gay surge logo após um dos poucos grupos consistentes: Ilga Portugal, que tinha como rosto - visível - Gonçalo Dumas Diniz, jovem que, de forma diplomática, começou a entrar na casa dos portugueses falando sem pudor de tais temáticas.
É este o cenário LGBT, com António Guterres à frente do país, para lamento de daquela comunidade. Motivos não faltavam, até porque, sobre a homossexualidade, o primeiro-ministro socialista católico, ao ser confrontado por Margarida Marante, na SIC, sugeria que o melhor era falarem com a mulher, psiquiatra. Era uma questão que o "incomodava", haveria de frisar em entrevistas posteriores. "As declarações surgem no período de 19 anos em que não se mexe nas leis. Mas há algo importante: Guterres é forçado a dizer o que pensa. Quer dizer que o movimento LGBT atingia o seu objectivo, que era a visibilidade", traduz a socióloga.
Algumas alterações só ocorrem à força da Justiça. O caso "João Mouta" faz jurisprudência a nível europeu. Um pai que, em Janeiro de 1996, vê o Tribunal da Relação de Lisboa, num acórdão do juiz Dinis Nunes, retirar-lhe a filha de oito anos e entregá-la à mãe. Motivo: era gay. Referiu o juiz que a "menor deve viver no seio de uma família tradicional", "uma vez que vive [o pai] com outro homem, como se de marido e mulher se tratasse".
O Estado português foi obrigado a indemnizar Mouta. Mas os danos eram irreparáveis: a jovem esteve longe do progenitor durante e após tal caminhada. Ana Santos salienta: "Pela primeira vez a homoparentalidade é pública, chega a tribunal e vence. Portugal é condenado à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Um pai homossexual conquista uma legitimidade, num percurso sozinho".
Personagens LGBT surgem na televisão, sem morrer nos primeiros episódios e sem atitudes estereotipadas [dentro das ideias 'mainstream' de que a lésbica era uma mulher com aspecto de camionista e o gay com tiques afeminados, tendo o rosa como cor pontuável no seu roupeiro]. Alexandra Lencastre, em "Diário de Maria", Paula Mora, na novela "Os Lobos", e Gabriel Leite, em "Terra Mãe", são excepções que se contam pelos dedos de uma só mão. Sendo que o último não conseguiu fugir a tiques em 146 episódios.
"Até então, o 'gay' só podia integrar uma novela se fosse para provocar o riso. Era uma espécie de bobo da corte. Não era um cidadão com expectativas. A partir dessa altura, principalmente com as séries juvenis como os 'Morangos', há um percurso que começa a ser desenvolvido para a integração de personagens LGBT"
Num sinal de pioneirismo, "Os Verdes" exigem alteração de leis. Junta-se a Juventude Socialista. Mas Portugal andava lento. Em plenos anos 90, na reedição do dicionário de Língua Portuguesa, a Porto Editora mantém a homossexualidade como "inversão sexual" e lesbianismo como "aberração do instinto sexual da mulher". Em Março de 1999, a homossexualidade sai da Classificação Nacional de Deficiências. À força da directiva comunitária do Tratado de Amsterdão, em Maio, os regulamentos de admissão à PSP e Forças Armadas deixam de classificar os homossexuais de "anormais sexuais" e "doentes mentais". As Uniões de Facto são deixadas cair no Parlamento pelo PS, em Outubro, sendo que apenas em 2001 seriam concretizadas, sem a adopção.
Casamento e um presidente contrariado
Nos anos seguintes a população LGBT assiste ao desaparecimento de artigos e normas discriminatórias do Instituto Português do Sangue - em 2009, o presidente do organismo, Gabriel Olim, reaplicou tais normas - e nos códigos de Trabalho e Penal. O artigo 13º da Constituição passa a incluir a orientação sexual. Nas ruas, o grupo activista "Panteras Rosa" pauta-se por acções invulgares, a "Não te prives" traz a Portugal o "Barco do Aborto" e os jovens LGBT formam a Rede Ex-aequo.
Contas feitas: a maioria das alterações legislativas ocorreu em governações de centro-direita. Porém, é já com outro socialista no Governo, José Sócrates, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo entra na agenda. Até porque, entretanto, o país já parara para a assistir à jornada de Teresa e Helena, lésbicas que, em Fevereiro de 2006, eram impedidas de se casarem no Registo Civil de Lisboa.
A 8 de Janeiro de 2010, os casamentos gays passam na Assembleia da República, sem a adopção, a exemplo de duas décadas de atribuição de direitos, pautados sempre por um senão. Lá fora, a sociedade civil conservadora organiza, sem efeito, o maior abaixo-assinado a favor de um referendo ao tema. O diploma marina entre o Tribunal Constitucional e o Palácio de Belém. Após ser anfitrião de uma extensa visita papal e contrariado, por defender outro tipo de solução legislativa, a 17 de Maio de 2010, o presidente Cavaco Silva promulga a lei. "Há momentos da vida de um país em que a ética da responsabilidade tem de ser colocada acima das convicções pessoais de cada um", alega.
A análise de Ana Cristina Santos a esta marcha é clara: "Há muito caminho a percorrer sendo óbvio que a questão da adopção surja nos próximos tempos. Olhando para estes 30 anos, a alteração jurídica não é tudo. É importante manter um trabalho cultural e educacional de modo a que as conquistas tenham continuidade". E como refere a socióloga: "Os direitos de uns não roubam espaço aos direitos de outros".
Se excluirmos o espírito comparativista a que sempre se submete e se, na aldeia global, se considerar somente a sua caminhada, Portugal acorda tarde para o direito à diferença e a igualdade de género. Preso a uma moral fortemente católica, pintalgada por uma das mais duradouras ditaduras da Europa no século XX, lá foi aprovando diplomas de protecção jurídica por imposição de directivas comunitárias e dos efeitos da visibilidade de um movimento LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgénero] emergente, que saiu à rua pela primeira vez em 2000, numa 'Marcha de Orgulho', em Lisboa.
É esta longa caminhada que, com a socióloga Ana Cristina Santos, investigadora do Instituto Birkbeck de Pesquisa Social, da Universidade de Londres, se retrata de forma cronológica nas páginas seguintes.
Duas décadas fora do armário mas com 'recato'
Na senda da revisão constitucional de 12 Agosto de 1982, que pôs termo ao Conselho de Revolução, 42 dias depois os homossexuais viram um decreto-lei abrir caminho para algo que um artigo centenário do Código Penal (CP) impedia: "direito à reserva da vida íntima". Caiam, assim, as medidas de segurança que podiam ir até ao internamento. Mas a revisão do CP deixava claro que orientação sexual era para ser "exercida em recato" e diferenciava as penalizações para homossexuais e heterossexuais que tivessem actos sexuais com menores, incorrendo os primeiros em penas mais pesadas.
A igualdade de direitos estabelecida pela Constituição de 1976 não era transversal. Falar de movimento LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgénero] era incipiente. Destaque-se o Colectivo de Homossexuais Revolucionários, do actor João Grosso, que durou um ano, tanto tempo quanto o Gay Internacional Rights, fundado em Braga. Outras tentativas de visibilidade acabaram por ser abafadas.
"Alguns que tinham sido alvo de perseguição política pelo regime pensaram que seriam beneficiados pelo poder político. Tal não se verificou. Após o 25 de Abril, o general Galvão de Melo, do Conselho de Revolução, alerta que a revolução não se fez para prostitutas e homossexuais, reagindo ao manifesto do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária", explica Ana Cristina Santos, autora, entre outras obras, de "A lei do desejo", análise extensa sobre direitos humanos e minorias sexuais.
E está marchada a década de 80: inócua e longe da difusão das acções que movimentos LGBT iam realizando em Inglaterra ou França. No campo legislativo o arranque da década seguinte também nada trouxe. Exceptuou-se a consolidação do activismo.
Homossexuais 'incomodavam' Guterres
Nome de guerreira: "Organa". A primeira revista para a população homossexual origina uma outra - "Lilás" - e está na génese do Clube Safo, em 1996, de onde desponta Fabíola Cardoso, activista que passa a movimentar-se na praça pública. Nasce o Grupo de Trabalho Homossexual dentro do Partido Socialista Revolucionário [hoje Bloco de Esquerda] e a revista "Korpus". A Opus Gay surge logo após um dos poucos grupos consistentes: Ilga Portugal, que tinha como rosto - visível - Gonçalo Dumas Diniz, jovem que, de forma diplomática, começou a entrar na casa dos portugueses falando sem pudor de tais temáticas.
É este o cenário LGBT, com António Guterres à frente do país, para lamento de daquela comunidade. Motivos não faltavam, até porque, sobre a homossexualidade, o primeiro-ministro socialista católico, ao ser confrontado por Margarida Marante, na SIC, sugeria que o melhor era falarem com a mulher, psiquiatra. Era uma questão que o "incomodava", haveria de frisar em entrevistas posteriores. "As declarações surgem no período de 19 anos em que não se mexe nas leis. Mas há algo importante: Guterres é forçado a dizer o que pensa. Quer dizer que o movimento LGBT atingia o seu objectivo, que era a visibilidade", traduz a socióloga.
Algumas alterações só ocorrem à força da Justiça. O caso "João Mouta" faz jurisprudência a nível europeu. Um pai que, em Janeiro de 1996, vê o Tribunal da Relação de Lisboa, num acórdão do juiz Dinis Nunes, retirar-lhe a filha de oito anos e entregá-la à mãe. Motivo: era gay. Referiu o juiz que a "menor deve viver no seio de uma família tradicional", "uma vez que vive [o pai] com outro homem, como se de marido e mulher se tratasse".
O Estado português foi obrigado a indemnizar Mouta. Mas os danos eram irreparáveis: a jovem esteve longe do progenitor durante e após tal caminhada. Ana Santos salienta: "Pela primeira vez a homoparentalidade é pública, chega a tribunal e vence. Portugal é condenado à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Um pai homossexual conquista uma legitimidade, num percurso sozinho".
Personagens LGBT surgem na televisão, sem morrer nos primeiros episódios e sem atitudes estereotipadas [dentro das ideias 'mainstream' de que a lésbica era uma mulher com aspecto de camionista e o gay com tiques afeminados, tendo o rosa como cor pontuável no seu roupeiro]. Alexandra Lencastre, em "Diário de Maria", Paula Mora, na novela "Os Lobos", e Gabriel Leite, em "Terra Mãe", são excepções que se contam pelos dedos de uma só mão. Sendo que o último não conseguiu fugir a tiques em 146 episódios.
"Até então, o 'gay' só podia integrar uma novela se fosse para provocar o riso. Era uma espécie de bobo da corte. Não era um cidadão com expectativas. A partir dessa altura, principalmente com as séries juvenis como os 'Morangos', há um percurso que começa a ser desenvolvido para a integração de personagens LGBT"
Num sinal de pioneirismo, "Os Verdes" exigem alteração de leis. Junta-se a Juventude Socialista. Mas Portugal andava lento. Em plenos anos 90, na reedição do dicionário de Língua Portuguesa, a Porto Editora mantém a homossexualidade como "inversão sexual" e lesbianismo como "aberração do instinto sexual da mulher". Em Março de 1999, a homossexualidade sai da Classificação Nacional de Deficiências. À força da directiva comunitária do Tratado de Amsterdão, em Maio, os regulamentos de admissão à PSP e Forças Armadas deixam de classificar os homossexuais de "anormais sexuais" e "doentes mentais". As Uniões de Facto são deixadas cair no Parlamento pelo PS, em Outubro, sendo que apenas em 2001 seriam concretizadas, sem a adopção.
Casamento e um presidente contrariado
Nos anos seguintes a população LGBT assiste ao desaparecimento de artigos e normas discriminatórias do Instituto Português do Sangue - em 2009, o presidente do organismo, Gabriel Olim, reaplicou tais normas - e nos códigos de Trabalho e Penal. O artigo 13º da Constituição passa a incluir a orientação sexual. Nas ruas, o grupo activista "Panteras Rosa" pauta-se por acções invulgares, a "Não te prives" traz a Portugal o "Barco do Aborto" e os jovens LGBT formam a Rede Ex-aequo.
Contas feitas: a maioria das alterações legislativas ocorreu em governações de centro-direita. Porém, é já com outro socialista no Governo, José Sócrates, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo entra na agenda. Até porque, entretanto, o país já parara para a assistir à jornada de Teresa e Helena, lésbicas que, em Fevereiro de 2006, eram impedidas de se casarem no Registo Civil de Lisboa.
A 8 de Janeiro de 2010, os casamentos gays passam na Assembleia da República, sem a adopção, a exemplo de duas décadas de atribuição de direitos, pautados sempre por um senão. Lá fora, a sociedade civil conservadora organiza, sem efeito, o maior abaixo-assinado a favor de um referendo ao tema. O diploma marina entre o Tribunal Constitucional e o Palácio de Belém. Após ser anfitrião de uma extensa visita papal e contrariado, por defender outro tipo de solução legislativa, a 17 de Maio de 2010, o presidente Cavaco Silva promulga a lei. "Há momentos da vida de um país em que a ética da responsabilidade tem de ser colocada acima das convicções pessoais de cada um", alega.
A análise de Ana Cristina Santos a esta marcha é clara: "Há muito caminho a percorrer sendo óbvio que a questão da adopção surja nos próximos tempos. Olhando para estes 30 anos, a alteração jurídica não é tudo. É importante manter um trabalho cultural e educacional de modo a que as conquistas tenham continuidade". E como refere a socióloga: "Os direitos de uns não roubam espaço aos direitos de outros".
My Own Private Idaho
por Fernanda Câncio
tenho, nestes dias, pensado muito no gonçalo dinis.
o gonçalo dinis foi o primeiro presidente da ilga que conheci. creio que foi aliás o primeiro presidente da ilga. conheci-o quando trabalhava na sic, no programa esta semana, de margarida marante, e organizei um debate sobre os direitos dos homossexuais. foi em 1997, acho -- a ilga-portugal foi criada em 1996. nessa altura o gonçalo ainda era só um convidado. lembro-me que o achei tímido -- era das primeiras vezes, senão a primeira, que o gonçalo ia a um programa de tv -- e que não me deixou uma impressão muito forte.
voltei a convidá-lo, em 1998 ou 1999, para falar do mesmo assunto, num debate em que estavam também sérgio sousa pinto, maria josé nogueira pinto e sérgio vitorino. estava muito mais solto e também muito mais bonito. não me lembro bem de como foi, mas ficámos amigos. passámos uma noite no mah-jong, depois de um jantar do casa nostra, a falar, a falar, a falar. o rui simões, que estava no bar, filmou-nos a falar durante muito tempo sem darmos por isso -- muito embrenhados, as cabeças juntas, a sorrir.
nessa altura, estávamos, eu, o gonçalo e o sérgio vitorino, empenhados em que portugal aprovasse a primeira lei das uniões de facto -- uniões de facto para casais de sexo diferente e do mesmo sexo. não me lembro sequer se já havia bloco de esquerda nessa altura -- o be chega ao parlamento nas legislativas de 1999 -- mas o ps fez aprovar, em 99, uma lei que excluia os casais do mesmo sexo do reconhecimento das uniões de facto. ninguém falava em casamento, nessa altura. em 1998, quando foi publicado o primeiro manifesto dos grupos homossexuais, as exigências incluiam a alteração da constituição para incluir no artigo 13º a não discriminação em função da orientação sexual, o reconhecimento das uniões de facto e o acesso à adopção. O casamento não fazia parte das reivindicações. em 1998, não havia um único país do mundo com casamento para casais do mesmo sexo -- a holanda foi o primeiro a consagrá-lo, em 2001, o mesmo ano em que por cá se aprovava uma lei de uniões de facto que incluia os casais do mesmo sexo e que os excluia da adopção.
creio que o gonçalo, quando a lei das uniões de facto foi aprovada, estava já a viver em londres, para onde foi por se ter apaixonado por um inglês e onde ainda hoje vive, 'casado' -- o casamento britânico para casais do mesmo sexo tem outro nome, é um vrenhec --, profissionalmente muito bem sucedido e tão inglês que até já fala português com sotaque. o gonçalo foi, com o sérgio vitorino, que veio mais tarde a criar as panteras rosa, a pessoa que melhor me ajudou a pensar sobre a luta lgbt. antes de conhecer o gonçalo, só tinha conhecido o josé carlos tavares, do grupo de trabalho homossexual do psr -- que entrevistei para a grande reportagem, em 1992 ou 1993, quando ninguém sabia o que isto -- lgbt -- queria dizer e ninguém se interessava pela 'luta dos homossexuais'. seis anos depois, em 1999, quase ninguém sabia o que era a ilga. nos media portugueses os homossexuais eram uma curiosidade, uma espécie de freak show, e havia muita pouca gente a assumir-se como tal (ainda hoje há). eram muito poucos os jornalistas que se interessavam pelo assunto, tão poucos que o interesse em si surgia como uma coisa estranha, uma espécie de 'causa'. era preciso, de facto, que o fosse -- era a única forma de conseguir espaço para o assunto: ser interessado, persistente, empenhado. só reparar -- e defender -- que o assunto era assunto já era empenho.parece que foi há cem anos, eu e o gonçalo no mah-jong, a descobrir que éramos amigos e que pensávamos tão parecido e queríamos mudar o mundo e fazê-lo nosso de maneiras tão parecidas e faltava tanto, tanto e éramos tão poucos. mas foi só há 11 anos -- e falta tão menos, e somos tantos mais. tão pouca pachorra para quem vem agora, quando estamos aqui, fazer prognósticos de fim de jogo. o casamento passou sem adopção? passou. como passaram as uniões de facto sem adopção em 2001, como passou a procriação assistida só para casais hetero em 2006, como passou a interpretação da portaria das famílias de acolhimento excluindo casais do mesmo sexo em 2008. não porque quem festeja o casamento não tenha lutado pela adopção, por uma lei da pma sem exclusão de mulheres sós ou em casal do mesmo sexo, por uma interpretação diferente em relação às famílias de acolhimento, mas porque quem decide, no caso os deputados e os governos, entenderam fazer assim.
culpar quem lutou e continua a lutar por tudo -- casamento, parentalidade, igualdade total -- por termos ainda só igualdade parcial é tão completamente estúpido, contra-producente e destrutivo, tão desnecessariamente negativo e derrotista e sobretudo tão injusto e inútil. não estão satisfeitos? surpresa: ninguém está completamente satisfeito. mas quando se obtém uma vitória importante, mesmo que parcial, costuma-se festejar e não começar a desconsiderar a vitória e a acusar quem se alegra com ela de ter atrasado ou comprometido ou 'vendido' a luta ou lá que raio de idiotia passa por essas cabeças. só faz isso quem está muito menos preocupado com o resultado do que com quem festeja ou quem surge publicamente como associado à vitória. sucede que é quem se auto-exclui da vitória que a atribui aos outros, para fazer disso uma vitimização. cena doentia, essa. e tão, tão infeliz.
experimentem antes isto: pensar no gonçalo dinis e no sérgio vitorino em 1999, quando estava tudo a começar, num debate na sic a ouvir de maria josé nogueira pinto que ela até achava que eles tinham direito a existir. e pensem onde estamos agora. experimentem ficar felizes e pensar que se só levámos 11 anos a chegar aqui, o resto não pode ser assim tão difícil. e que estamos todos de parabéns.
eu penso no gonçalo, naquela noite no mah-jong, e em como é a ele, que nem sequer vive em portugal e que está a naturalizar-se inglês e de quem tão pouca gente se lembra e que não quer louros disto para nada, que dou por mim a querer agradecer e dedicar esta vitória.
Posted by por AMC
on 21:11. Filed under
essa coisa de viver em sociedade,
palavras dos outros
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