Opção: Manaus
Em Agosto do ano passado, este texto de Leandro Humberto desencadeou inúmeras reacções em apenas 24 horas. Vai daí, no dia seguinte, ele entendeu por bem responder escrevendo este outro. A discussão prosseguiu. Na época eu não disse nada. Ou disse pouco. Limitei-me a sentar em escuta, procurando ouvir aquilo com que cada um chegava e trazia para deixar dito.
Ontem, porém, durante um jantar um tanto ou quanto oficial que montou banquete em Lisboa, a conversa seguiu o rumo do tema e recordou-me a polémica blogoesférica da época. Entre gaivota do Tejo e arara da Floresta, o facto é que me vi subitamente na pele (ou nas penas) da ave rara eleita à berlinda, convocada a amparar o ataque de umas quantas entidades brasileiras presentes, que diziam não entender «de jeito nenhum» que uma portuguesa, «lisboeta da Europa», pudesse gostar de uma cidade como Manaus e, mais inacreditavelmente ainda, decidir-se a morar por lá.
Um ano volvido, as imagens da ironia actualizaram-se e são já outras, mas a cada vez que alguém aludia ao «mito do Avatar enfurnado na mata verde», os argumentos de Leandro iam-se reavivando mais nítidos na minha memória. Tal como nessa altura, dei comigo a pensar que haveria que procurar entender de forma mais ampla a «tropa provinciana», como Leandro então lhe chamava, que não hesita em sair em defesa de Manaus e na qual inevitavelmente me incluo. Dei comigo a pensar no quanto seria interessante enquadrar de forma menos estreita esse «nativismo infantil», como escrevia Leandro – expressão com a qual estas entidades brasileiras obviamente concordavam porque insistiam em apontá-la sem pudor a qualquer consideração favorável que eu tecesse a propósito de Manaus. Tal como na época continua a parecer-me que a coisa vai além do simples ímpeto uterino que faz as mães dizerem «eu posso bater no meu filho, mas não consinto que ninguém lhe toque», que é como quem diz «ninguém de fora pode falar mal da minha cidade».
Todas as adversidades que Leandro apontava nos dois textos que escreveu estão ainda lá, reconheço, por volta dos entornos e do paralelo onde Manaus se instalou, séculos atrás. É uma região dura de se viver em muitos aspectos, a começar pela extravagância que a Natureza assume para aquelas bandas. Mesmo assim, muitos escolhem instalar aí a sua morada. Mais: inúmeros outros trocam as paragens em que nasceram e preferem vir morar em Manaus. Tenho para mim que quanto maior é a teimosia de montar morada num lugar inóspito, mais extensa e complexa é a declaração de amor a um determinado beirado de terra.
É fácil gostar de morar num paraíso de asseio e arrumo, onde tudo funciona e a ordem ameniza a engrenagem dos dias. Percebe-se sem dificuldade que todos queiram. Estranho, aliás, seria não querer. Mais difícil, contudo, é entender que voluntariamente se queira habitar o mais inóspito, que deliberadamente se escolha um lugar mais rugoso e menos amaciado pelas virtudes da eficácia, da segurança e da comodidade. Mas sucede. E – coisa engraçada! – andando pelo Norte do Brasil sucede algo de semelhante ao que também se encontra, por exemplo, quando se atravessam os áridos cafundós do Grande Sertão: bate-se de frente com gente com um profundo, quase inexplicável, amor à sua terra. Para elas é sim, o «último Éden». Eu até diria mais: para elas é o único topos concebível à face do Planeta. É algo que não se encontra em São Paulo, nem em Londres, nem em Lisboa ou Madrid, onde não sendo impossível encontrar amantes orgulhosos e confessos da sua cidade, dificilmente se acha quem simplesmente sufocasse ou perdesse o chão se o arrancassem dali e nem se consiga imaginar capaz de sobreviver em outras paragens.
Nestes últimos anos de intenso convívio com amazónidas, tenho cada vez mais para mim que, na impossibilidade de pleno entendimento dessa relação de cada um com o lugar em que reconhece a sua própria e natural morada, melhor é admitir um je-ne-sais-quois de inefável que – quer queiramos ou não reconhecer – nos escapa a nós, lisboetas e paulistanos, mas que é absolutamente cristalino e tangível, por exemplo, a manauaras e acreanos, como o é também a sertanejos. É que, em verdade, estou crente de ser aí que, essencialmente, afunda raiz a explicação e a razão de ser das coisas e opções que tantas vezes nos fazem estalar a perplexidade e nos alagam a incompreensão. Como a declaração de amor diária a uma terra que, mais do que chamar de nossa, se tem como insolúvel vínculo de pertença: o nexo de sentido que não apenas nos organiza e explica o Mundo, mas que resulta no único capaz de nos explicar a nós próprios.


