Entrevista a António Barreto: «As revoluções são sempre incompletas, sempre»
foto: Reinaldo Rodrigues
O antigo ministro e actual presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos agradece "aos deuses" ter vivido a Revolução de 1974. Crítico do estado do País, António Barreto diz no entanto que Abril permitiu que os portugueses ficassem "um pouco mais iguais". Uma entrevista em que fala de Portugal e da política, de Cavaco Silva, José Sócrates e também de Passos Coelho.
Há 36 anos, neste preciso dia, o que aconteceu? Houve um golpe de Estado ou iniciou-se uma revolução?
Houve um golpe de Estado, seguido de um derrube de Governo e de instituições, o que desencadeou gradualmente uma revolução. Os primeiros dez, doze meses caracterizam o início de uma revolução com alterações de carácter social, político, económico, cultural, de costumes, que a meu ver configuram um fenómeno revolucionário, uma revolução. Mas podemos dizer que foi incompleta, que não acabou.
Quem o ouve e quem o lê tem a certeza de que essa revolução foi incompleta, é isso que fica subjacente.
As revoluções são sempre incompletas, sempre.
Mas esta muito, demasiado incompleta.
Porque houve uma contra-revolução logo a seguir. Ao fim de um ano houve uma contra-revolução também com características próprias, isto é, configura alguns dos traços essenciais de uma contra-revolução, que é repor algumas situações anteriores à revolução, a contra-revolução é isso. Mas no caso português também foi diferente. Primeiro, não repôs tudo o que estava, ficou um regime democrático, e não um regime ditatorial, como o anterior. Repôs algumas situações de carácter social e económico, como a propriedade das terras ou das casas ocupadas e até das empresas; houve uma reposição parcial. A reprivatização que ocorreu mais tarde não veio exactamente colocar as mesmas coisas como estavam antes.
Ainda faz sentido por estes dias festejar aqueles acontecimentos?
Acho que sim. Agradeço aos deuses terem-me permitido viver o 25 de Abril. Infelizmente não o vivi cá, estava num comboio entre Budapeste e Colónia, só soube no dia seguinte porque estava no exílio, tinha ido visitar um irmão que vivia em Budapeste e ia visitar outro irmão que vivia na Holanda. E estou grato, recordo uma conversa que tive com amigos em Genebra em 74 e dizia que havia três coisas que já não iria ver na minha vida. Foi depois do 16 de Março, daquela aventura das Caldas da Rainha, que fiquei furioso com o Spínola, com os militares, com toda a gente, porque era uma oportunidade perdida, e eu dizia: "Isto agora vai durar mais uns anos"; "Há três coisas que nunca vou ver na vida, que é a liberdade em Portugal, o fim do apartheid e o fim do comunismo."
E viu tudo.
Enganei-me três vezes!
Acha que, auto-estradas à parte, podemos estar satisfeitos com o percurso que fizemos nestes 36 anos?
Estou satisfeito com alguns aspectos desse percurso, estou muito satisfeito. Até mesmo com as auto-estradas, até certa medida. Portugal é hoje um país próximo, as pessoas estão próximas umas das outras. Sou transmontano, nunca tinha ido ao Algarve na minha vida, tinha vindo a Lisboa uma vez, não conhecia o Alentejo! E isto era recíproco, as pessoas não se conheciam umas às outras. Talvez a Guerra do Ultramar, período em que estive a maior parte do tempo exilado, tenha sido o último movimento de mistura da população, porque os recrutas do Norte faziam a recruta no Sul, faziam-na cá em baixo, juntavam-se nas Forças Armadas. Houve uma mistura de população durante uns anos.
Também se exilou para fugir à guerra?
Sim. Politicamente, não queria fazer aquela guerra. Achava-a injusta, não do interesse nacional, e recusei fazê-la, sim.
Mas também ia falar das coisas boas, fala tão pouco das coisas boas que aconteceram neste período. Quais foram?
Tornar Portugal um país mais pequeno e mais próximo foi uma coisa boa. Ter diminuído o fardo enorme que havia em Portugal do nome da família, do sangue, do estatuto social, da condição social, isto diminuiu-se um bocado. Os portugueses ficaram um pouco mais iguais.
Há mais igualdade de oportunidades, que é um princípio de uma democracia?
Há poucas oportunidades em Portugal, mas mais do que há 40 anos, sim. Os cidadãos, no estatuto, são mais iguais. Talvez social e economicamente haja aí que dizer, porque há algumas desigualdades a aumentar. Mas no estatuto fundamental de dignidade humana e de cidadão há igualdade. E isso é uma vitória destes 30 anos. Acho que a saúde, o estado de protecção social que foi criado em tão pouco tempo, é um grande feito do País, da Nação, do Estado, da população - terem feito um serviço conforme existe. Com milhares de defeitos, com milhares de contos de desperdício, com incorrecções de todo o tipo, mas existe e protege. E os sistemas educativo universal e de segurança social, creio que são vantagens.
Mas é também no sistema educativo e na justiça que se centram as suas maiores críticas quando olha para a sociedade portuguesa.
É.
Mantém essa visão, isso não se alterou nos últimos meses?
De todo.
Concretamente, em relação à educação, o que tem a dizer?
Em relação à educação, o que está no haver é a universalização. Todas as crianças, todos os jovens vão à escola, a escolarização é completa, a rede escolar cobre o País inteiro, toda a gente tem acesso à educação e à escola, não há barreiras definitivas. O apoio social é considerável, não é muito grande, mas é considerável, há bolsas de estudo, até mesmo para o ensino secundário e ainda mais no ensino superior. Isto é o que está no haver, está conseguido. Parece um lugar-comum, que é uma coisa simples. Não é. Para Portugal, não é. Portugal puxou o analfabetismo e a falta de educação até muito tarde, só nos finais nos anos 60, meados, nos finais dos anos 60, ainda no antigo regime, é que começou a haver qualquer coisa no sentido de estimular, fomentar a educação. Recordo que o programa do eng. Veiga Simão, quando foi ministro do Marcelo Caetano, era democratizar a educação. A democratização da educação começou ali. Mas, de facto, foi depois do 25 de Abril que as coisas atingiram a dimensão que atingiram. O que está no deve? Que os princípios inspiradores - a teoria geral, a estratégia, a organização filosófica, cultural e política da educação - deram errado. As modas efémeras, as modas pedagógicas, a inversão de tantas funções… o facto de hoje se dizer em Portugal - e creio que noutros países, não é um facto só português - "o importante são as competências, não é saber." Isto a meu ver é um erro. Há quem diga que é mais importante uma pessoa saber ler o horário do comboio ou a bula do medicamento do que ler Camões ou Platão, isto é outro erro. A democracia cultural e da educação é dar a toda a gente Platão, Aristóteles, Camões, seja o que for. Isso é que é saber. Substituir por competências é um erro. Dizer que na sala de aula são todos iguais, professores e alunos, é outro erro. Dizer que aprender é um prazer e não um trabalho e um esforço é outro erro. Estes princípios - dizer que a sala de aula é um sítio de aprendizagem, não é um sítio de ensino - são outro erro. São estas inversões nos princípios que presidem à educação que a meu ver deram errado. E deram errado, vejam-se os resultados.
Da justiça, diz que ela está refém dos grandes grupos profissionais, dos magistrados, dos procuradores, dos advogados. Em certo sentido, a educação também tem esse problema, está refém das corporações e dos interesses das corporações?
É a títulos diferentes, falamos de números e de ideias diferentes. Na educação, o princípio filosófico, moral, cultural, que informa a educação é algo de muito organizado, tem 30 ou 40 anos e não é só português. São modas pedagógicas que começaram nos Estados Unidos nos anos 50 que estão agora a ser corrigidas e que espero - com um bocadinho de optimismo, apesar de vocês pensarem que sou muito céptico - que em Portugal, com dez ou 20 anos de atraso sobre os EUA, acabaremos por corrigir. Na justiça, não é a mesma coisa, no sentido em que não parece haver um princípio informador, ideológico, uma política informadora. São mais organização de interesses e tradição corporativa que têm aprisionado a justiça portuguesa.
Nestes 36 anos formou-se uma nova elite portuguesa, ou não? Ou essa elite existe, mas está aquém das suas expectativas?
Está muito aquém das minhas expectativas, aí é uma desilusão. As elites portuguesas do antigo regime eram reduzidas em número, em sentido de compromisso público e de responsabilidade pública, eram fracas no sentido da responsabilidade social, culturalmente… eram uma espécie de apartheid. As elites não se importavam ou não se interessavam com a cultura dos outros. O que é um princípio medíocre terrível, porque gosto de me distinguir é entre os iguais ou os melhores, não gosto de me distinguir entre os anões. As elites portuguesas no antigo regime gostavam de se distinguir era no meio de escravos, de servos, de anões e de analfabetos. Esperava mais, esperava que nestas três ou quatro décadas, depois da sociedade aberta e da sociedade democrática, que as elites antigas ou as novas, as classes médias que entretanto acedem à cultura, ou ao saber, ou ao poder económico, à importância, ou ao que for, esperava que houvesse uma maior responsabilidade social, uma maior responsabilidade de cidadão, uma maior vontade de se comparar com os melhores e não com os piores. E aí não temos grandes resultados.
Mas há elites em diversos campos de actividade, onde é maior a sua desilusão? Na cultura, na política, na economia? Onde é que as elites portuguesas estão mais aquém do que seria de esperar?
Creio que a distribuição é equitativa, merecem-se uns aos outros. Pensamos sempre o pior da política, que a elite política é a pior de todas. Não sei se é, é capaz de ser igual às outras. Pensamos o pior da elite política porque é visível, é a mais visível de todas. Na cultura, há intelectuais, criadores, artistas que muitas vezes se vêem; mas a quem estamos constantemente a remeter responsabilidades e a fazer acusações é aos políticos. Porque, de facto, não só são mais visíveis como têm mais meios, mais instrumentos. Os políticos podem ter mais influência no andamento das coisas, no enquadramento da nossa vida colectiva, do que os outros. Mas creio que tanto na elite económica como social, política ou cultural. Acho que se valem umas às outras.
Disse numa entrevista ao Jornal de Notícias, já há seis anos, que somos pequenos, pobres e incultos. Em seis anos, nada mudou?
Há mudanças. Somos menos pobres. O facto de se dizer, como se diz frequentemente, que as desigualdades em Portugal são hoje maiores do que há dez ou 20 anos é resultado de uma medida estatística que tem limites, é um indicador, um coeficiente de Gini, não vamos falar disso. Quer dizer que a separação entre os mais ricos e os mais pobres é ligeiramente maior do que há dez ou há 20 anos, mas isso não quer dizer que não tenham todos aumentado: as famílias pobres, as famílias remediadas têm hoje um poder de compra superior cinco ou seis vezes, em termos reais, do que há 20 ou 30 anos. Portanto, somos menos pobres, mas continuamos a ser os mais pobres da Europa. Somos menos pequenos ou menos periféricos no sentido em que a sociedade moderna - pelas comunicações, pela Internet, pela rádio, pela televisão, pela globalização, por tudo isso - talvez possa reduzir a importância da pequenez ou da dimensão, ou a importância da periferia. Mas continuamos a ser periféricos.
É por isso que diz que o facto de os portugueses serem os mais pobres dos ricos cria uma terrível frustração?
Terrível.
Devíamos viver mais satisfeitos com o que temos?
Não, jamais na vida. Jamais direi isso. Devíamos ter consciência de que estamos muito aquém do que queremos ser e que devíamos fazer um muito maior esforço para lá chegar. Devíamos trabalhar mais e fazer um maior esforço, ser mais rigorosos, pontuais e disciplinados para poder lá chegar. Se você tenta esbater ou ignorar as aspirações e as ambições das pessoas, está a matar as pessoas. As pessoas são também o que são a sua esperança, ambição e aspiração. E os portugueses hoje querem um sistema de saúde como o sueco, um sistema educativo como o dinamarquês e um sistema de informação como o inglês; querem o melhor do mundo! Estão muito aquém por serem, justamente, os mais pobres do grupo dos mais ricos.
E têm de se esforçar mais?
Sim, esforçar-se mais. E as elites aí não dão grande exemplo, não fazem grande esforço.
Há pouco abordámos a justiça. Em Portugal há todos os sinais de que o nosso regime vive atormentado pela corrupção. Como olha para estes 36 anos à luz daquele que devia ser o comportamento ético e moral da sociedade portuguesa?
Aquilo que mais me pesa no sistema de justiça português é que o sistema de justiça não tem alternativa, e não deve ter. A alternativa ao sistema de justiça é ou fugir, ou o crime, ou a vingança pessoal, ou a justiça por mãos próprias. Não quero nada disto, além de que não reconheço a nenhuma entidade privada a autoridade ou legitimidade para exercer qualquer função de justiça no essencial. Reconheço tudo isto à educação - a educação pode ser privada, pode haver alternativas; dentro do público, posso arranjar maneira de os meus filhos irem para outra escola e não para aquela, se ela for má. Na saúde há alternativa; até na Segurança Social há alternativa; desde que não seja pobre nem miserável, tem algumas alternativas com sistemas de seguros com outros arranjos possíveis. Na justiça, não há, é o único sistema social em que tem um único sistema diante de si. Ora, a justiça toca tudo, toca a sua vida familiar, o casamento, o despejo, o arrendamento, a propriedade, os contratos; tudo o que você faz tem de estar enquadrado pela justiça, que dá garantias, que castiga ou que recompensa. Em Portugal, cada vez mais a desconfiança da justiça é maior.
Mas isso tem razão de ser? Não acha que estamos melhor do que há 20, 30 anos?
Não, acho que estamos pior. Basta ver, todos os dias, ainda ontem, anteontem, ainda agora todo o processo envolvendo o julgamento de um caso de corrupção que foi denunciado por um advogado, a maneira como se processou isto tudo. Temos o processo da Casa Pia, que continua há seis anos em espera, há profissionais ligados a este caso que têm hoje 45 ou 50 anos e que dizem que até à reforma vão ter a Casa Pia atrás, porque vai haver os recursos, tudo isso. Portugal foi muitas vezes condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por atraso e por justiça incompleta, por justiça deficiente.
O sistema democrático pode sobreviver à falta de confiança dos cidadãos na justiça do seu país?
Não sei se pode sobreviver ou não, mas que fica deficiente e que corre sérios riscos, fica. Na minha maneira de pensar, há três elementos essenciais para a democracia, para a minha liberdade. O primeiro é tudo o que diz respeito à urna, ao voto, ao Parlamento, às autarquias, à eleição das pessoas, à representatividade; a urna é o primeiro símbolo. O segundo símbolo - como estou diante de vocês, tenho de dizer a palavra expressa, a palavra escrita, a palavra impressa ou a estatística - é a informação; seja estatística, a dos assuntos do Estado, a dos assuntos colectivos, seja a informação de todos os dias dos jornais e da rádio. E o terceiro é o tribunal. São estes três elementos que a meu ver garantem e asseguram a democracia. No primeiro, no voto, está a correr. Ao contrário de quase toda a gente que conheço, considero que o 25 de Abril foi cumprido. Neste sentido, o 25 de Abril, o essencial e o fundamental do 25 de Abril, é a democracia. Voto; quem ganha governa; quem perde é governado; a maioria respeita a minoria; a minoria respeita a maioria; e há regularmente eleições. Isto é o 25 de Abril e está cumprido.
Mas não falta cumprir depois o voto? Para que é que ele vale? Quando diz que a justiça está nas mãos das corporações, significa que os governos não estão a cumprir o voto do povo nessa parte?
Mas estamos a entrar depois na qualidade do sistema político, na qualidade do sistema social, que é outra coisa. O 25 de Abril não foi feito para isso, foi feito para garantir a liberdade dos cidadãos e a democracia. Isso está garantido. Se nos governamos mal, se empobrecemos, nós estamos a empobrecer há dez anos - desde 2001, 2002 que Portugal empobrece realmente em relação à Europa e até mesmo, em certos anos, em relação a nós próprios -, isto não é culpa do 25 de Abril nem da liberdade, é culpa de maus governos, ou culpa de crises internacionais, ou culpa de uma sociedade com deficiências. Não é culpa da democracia, com certeza.
Falou do voto. Ia falar da informação.
A informação, em boa parte, acho que está cumprida. Temos uma informação livre em Portugal. Sei que há riscos, que há interferências, que há pressões. Sei isso tudo. Vocês sabem, nós sabemos. Mas o essencial, se quero dizer o que me apetece e o que penso, como estou a fazer agora, nada me impede. Po-de haver pessoas que não têm acesso por uma razão qualquer, porque não são conhecidas, porque ninguém quer saber o que elas pensam, porque dizem parvoíces; com certeza que há isso, porque tudo tem as suas regras. Mas não sinto nenhuma pressão, nenhum constrangimento na minha liberdade de pensar, na minha liberdade de me exprimir. Pode haver pessoas que tenham certos cargos e que, se dizem algumas coisas, podem depois ter represálias. Isso faz parte das sociedades modernas. Há problemas com a imprensa, com a estrutura da imprensa, rádio, televisão e jornais. No essencial informar corre bem e corre muito melhor o outro tipo de informação, que é a informação pelo Estado e pelas empresas - as empresas também têm responsabilidades em dar informação ao público.
por João Marcelino (DN) e Paulo Baldaia (TSF)
publicado na edição de hoje do Diário de Notícias
# A íntegra do programa Discurso Directo, emitido aos domingos, cerca das 11h 10, na antena da TSF: vídeo e podcast
Houve um golpe de Estado, seguido de um derrube de Governo e de instituições, o que desencadeou gradualmente uma revolução. Os primeiros dez, doze meses caracterizam o início de uma revolução com alterações de carácter social, político, económico, cultural, de costumes, que a meu ver configuram um fenómeno revolucionário, uma revolução. Mas podemos dizer que foi incompleta, que não acabou.
Quem o ouve e quem o lê tem a certeza de que essa revolução foi incompleta, é isso que fica subjacente.
As revoluções são sempre incompletas, sempre.
Mas esta muito, demasiado incompleta.
Porque houve uma contra-revolução logo a seguir. Ao fim de um ano houve uma contra-revolução também com características próprias, isto é, configura alguns dos traços essenciais de uma contra-revolução, que é repor algumas situações anteriores à revolução, a contra-revolução é isso. Mas no caso português também foi diferente. Primeiro, não repôs tudo o que estava, ficou um regime democrático, e não um regime ditatorial, como o anterior. Repôs algumas situações de carácter social e económico, como a propriedade das terras ou das casas ocupadas e até das empresas; houve uma reposição parcial. A reprivatização que ocorreu mais tarde não veio exactamente colocar as mesmas coisas como estavam antes.
Ainda faz sentido por estes dias festejar aqueles acontecimentos?
Acho que sim. Agradeço aos deuses terem-me permitido viver o 25 de Abril. Infelizmente não o vivi cá, estava num comboio entre Budapeste e Colónia, só soube no dia seguinte porque estava no exílio, tinha ido visitar um irmão que vivia em Budapeste e ia visitar outro irmão que vivia na Holanda. E estou grato, recordo uma conversa que tive com amigos em Genebra em 74 e dizia que havia três coisas que já não iria ver na minha vida. Foi depois do 16 de Março, daquela aventura das Caldas da Rainha, que fiquei furioso com o Spínola, com os militares, com toda a gente, porque era uma oportunidade perdida, e eu dizia: "Isto agora vai durar mais uns anos"; "Há três coisas que nunca vou ver na vida, que é a liberdade em Portugal, o fim do apartheid e o fim do comunismo."
E viu tudo.
Enganei-me três vezes!
Acha que, auto-estradas à parte, podemos estar satisfeitos com o percurso que fizemos nestes 36 anos?
Estou satisfeito com alguns aspectos desse percurso, estou muito satisfeito. Até mesmo com as auto-estradas, até certa medida. Portugal é hoje um país próximo, as pessoas estão próximas umas das outras. Sou transmontano, nunca tinha ido ao Algarve na minha vida, tinha vindo a Lisboa uma vez, não conhecia o Alentejo! E isto era recíproco, as pessoas não se conheciam umas às outras. Talvez a Guerra do Ultramar, período em que estive a maior parte do tempo exilado, tenha sido o último movimento de mistura da população, porque os recrutas do Norte faziam a recruta no Sul, faziam-na cá em baixo, juntavam-se nas Forças Armadas. Houve uma mistura de população durante uns anos.
Também se exilou para fugir à guerra?
Sim. Politicamente, não queria fazer aquela guerra. Achava-a injusta, não do interesse nacional, e recusei fazê-la, sim.
Mas também ia falar das coisas boas, fala tão pouco das coisas boas que aconteceram neste período. Quais foram?
Tornar Portugal um país mais pequeno e mais próximo foi uma coisa boa. Ter diminuído o fardo enorme que havia em Portugal do nome da família, do sangue, do estatuto social, da condição social, isto diminuiu-se um bocado. Os portugueses ficaram um pouco mais iguais.
Há mais igualdade de oportunidades, que é um princípio de uma democracia?
Há poucas oportunidades em Portugal, mas mais do que há 40 anos, sim. Os cidadãos, no estatuto, são mais iguais. Talvez social e economicamente haja aí que dizer, porque há algumas desigualdades a aumentar. Mas no estatuto fundamental de dignidade humana e de cidadão há igualdade. E isso é uma vitória destes 30 anos. Acho que a saúde, o estado de protecção social que foi criado em tão pouco tempo, é um grande feito do País, da Nação, do Estado, da população - terem feito um serviço conforme existe. Com milhares de defeitos, com milhares de contos de desperdício, com incorrecções de todo o tipo, mas existe e protege. E os sistemas educativo universal e de segurança social, creio que são vantagens.
Mas é também no sistema educativo e na justiça que se centram as suas maiores críticas quando olha para a sociedade portuguesa.
É.
Mantém essa visão, isso não se alterou nos últimos meses?
De todo.
Concretamente, em relação à educação, o que tem a dizer?
Em relação à educação, o que está no haver é a universalização. Todas as crianças, todos os jovens vão à escola, a escolarização é completa, a rede escolar cobre o País inteiro, toda a gente tem acesso à educação e à escola, não há barreiras definitivas. O apoio social é considerável, não é muito grande, mas é considerável, há bolsas de estudo, até mesmo para o ensino secundário e ainda mais no ensino superior. Isto é o que está no haver, está conseguido. Parece um lugar-comum, que é uma coisa simples. Não é. Para Portugal, não é. Portugal puxou o analfabetismo e a falta de educação até muito tarde, só nos finais nos anos 60, meados, nos finais dos anos 60, ainda no antigo regime, é que começou a haver qualquer coisa no sentido de estimular, fomentar a educação. Recordo que o programa do eng. Veiga Simão, quando foi ministro do Marcelo Caetano, era democratizar a educação. A democratização da educação começou ali. Mas, de facto, foi depois do 25 de Abril que as coisas atingiram a dimensão que atingiram. O que está no deve? Que os princípios inspiradores - a teoria geral, a estratégia, a organização filosófica, cultural e política da educação - deram errado. As modas efémeras, as modas pedagógicas, a inversão de tantas funções… o facto de hoje se dizer em Portugal - e creio que noutros países, não é um facto só português - "o importante são as competências, não é saber." Isto a meu ver é um erro. Há quem diga que é mais importante uma pessoa saber ler o horário do comboio ou a bula do medicamento do que ler Camões ou Platão, isto é outro erro. A democracia cultural e da educação é dar a toda a gente Platão, Aristóteles, Camões, seja o que for. Isso é que é saber. Substituir por competências é um erro. Dizer que na sala de aula são todos iguais, professores e alunos, é outro erro. Dizer que aprender é um prazer e não um trabalho e um esforço é outro erro. Estes princípios - dizer que a sala de aula é um sítio de aprendizagem, não é um sítio de ensino - são outro erro. São estas inversões nos princípios que presidem à educação que a meu ver deram errado. E deram errado, vejam-se os resultados.
Da justiça, diz que ela está refém dos grandes grupos profissionais, dos magistrados, dos procuradores, dos advogados. Em certo sentido, a educação também tem esse problema, está refém das corporações e dos interesses das corporações?
É a títulos diferentes, falamos de números e de ideias diferentes. Na educação, o princípio filosófico, moral, cultural, que informa a educação é algo de muito organizado, tem 30 ou 40 anos e não é só português. São modas pedagógicas que começaram nos Estados Unidos nos anos 50 que estão agora a ser corrigidas e que espero - com um bocadinho de optimismo, apesar de vocês pensarem que sou muito céptico - que em Portugal, com dez ou 20 anos de atraso sobre os EUA, acabaremos por corrigir. Na justiça, não é a mesma coisa, no sentido em que não parece haver um princípio informador, ideológico, uma política informadora. São mais organização de interesses e tradição corporativa que têm aprisionado a justiça portuguesa.
Nestes 36 anos formou-se uma nova elite portuguesa, ou não? Ou essa elite existe, mas está aquém das suas expectativas?
Está muito aquém das minhas expectativas, aí é uma desilusão. As elites portuguesas do antigo regime eram reduzidas em número, em sentido de compromisso público e de responsabilidade pública, eram fracas no sentido da responsabilidade social, culturalmente… eram uma espécie de apartheid. As elites não se importavam ou não se interessavam com a cultura dos outros. O que é um princípio medíocre terrível, porque gosto de me distinguir é entre os iguais ou os melhores, não gosto de me distinguir entre os anões. As elites portuguesas no antigo regime gostavam de se distinguir era no meio de escravos, de servos, de anões e de analfabetos. Esperava mais, esperava que nestas três ou quatro décadas, depois da sociedade aberta e da sociedade democrática, que as elites antigas ou as novas, as classes médias que entretanto acedem à cultura, ou ao saber, ou ao poder económico, à importância, ou ao que for, esperava que houvesse uma maior responsabilidade social, uma maior responsabilidade de cidadão, uma maior vontade de se comparar com os melhores e não com os piores. E aí não temos grandes resultados.
Mas há elites em diversos campos de actividade, onde é maior a sua desilusão? Na cultura, na política, na economia? Onde é que as elites portuguesas estão mais aquém do que seria de esperar?
Creio que a distribuição é equitativa, merecem-se uns aos outros. Pensamos sempre o pior da política, que a elite política é a pior de todas. Não sei se é, é capaz de ser igual às outras. Pensamos o pior da elite política porque é visível, é a mais visível de todas. Na cultura, há intelectuais, criadores, artistas que muitas vezes se vêem; mas a quem estamos constantemente a remeter responsabilidades e a fazer acusações é aos políticos. Porque, de facto, não só são mais visíveis como têm mais meios, mais instrumentos. Os políticos podem ter mais influência no andamento das coisas, no enquadramento da nossa vida colectiva, do que os outros. Mas creio que tanto na elite económica como social, política ou cultural. Acho que se valem umas às outras.
Disse numa entrevista ao Jornal de Notícias, já há seis anos, que somos pequenos, pobres e incultos. Em seis anos, nada mudou?
Há mudanças. Somos menos pobres. O facto de se dizer, como se diz frequentemente, que as desigualdades em Portugal são hoje maiores do que há dez ou 20 anos é resultado de uma medida estatística que tem limites, é um indicador, um coeficiente de Gini, não vamos falar disso. Quer dizer que a separação entre os mais ricos e os mais pobres é ligeiramente maior do que há dez ou há 20 anos, mas isso não quer dizer que não tenham todos aumentado: as famílias pobres, as famílias remediadas têm hoje um poder de compra superior cinco ou seis vezes, em termos reais, do que há 20 ou 30 anos. Portanto, somos menos pobres, mas continuamos a ser os mais pobres da Europa. Somos menos pequenos ou menos periféricos no sentido em que a sociedade moderna - pelas comunicações, pela Internet, pela rádio, pela televisão, pela globalização, por tudo isso - talvez possa reduzir a importância da pequenez ou da dimensão, ou a importância da periferia. Mas continuamos a ser periféricos.
É por isso que diz que o facto de os portugueses serem os mais pobres dos ricos cria uma terrível frustração?
Terrível.
Devíamos viver mais satisfeitos com o que temos?
Não, jamais na vida. Jamais direi isso. Devíamos ter consciência de que estamos muito aquém do que queremos ser e que devíamos fazer um muito maior esforço para lá chegar. Devíamos trabalhar mais e fazer um maior esforço, ser mais rigorosos, pontuais e disciplinados para poder lá chegar. Se você tenta esbater ou ignorar as aspirações e as ambições das pessoas, está a matar as pessoas. As pessoas são também o que são a sua esperança, ambição e aspiração. E os portugueses hoje querem um sistema de saúde como o sueco, um sistema educativo como o dinamarquês e um sistema de informação como o inglês; querem o melhor do mundo! Estão muito aquém por serem, justamente, os mais pobres do grupo dos mais ricos.
E têm de se esforçar mais?
Sim, esforçar-se mais. E as elites aí não dão grande exemplo, não fazem grande esforço.
Há pouco abordámos a justiça. Em Portugal há todos os sinais de que o nosso regime vive atormentado pela corrupção. Como olha para estes 36 anos à luz daquele que devia ser o comportamento ético e moral da sociedade portuguesa?
Aquilo que mais me pesa no sistema de justiça português é que o sistema de justiça não tem alternativa, e não deve ter. A alternativa ao sistema de justiça é ou fugir, ou o crime, ou a vingança pessoal, ou a justiça por mãos próprias. Não quero nada disto, além de que não reconheço a nenhuma entidade privada a autoridade ou legitimidade para exercer qualquer função de justiça no essencial. Reconheço tudo isto à educação - a educação pode ser privada, pode haver alternativas; dentro do público, posso arranjar maneira de os meus filhos irem para outra escola e não para aquela, se ela for má. Na saúde há alternativa; até na Segurança Social há alternativa; desde que não seja pobre nem miserável, tem algumas alternativas com sistemas de seguros com outros arranjos possíveis. Na justiça, não há, é o único sistema social em que tem um único sistema diante de si. Ora, a justiça toca tudo, toca a sua vida familiar, o casamento, o despejo, o arrendamento, a propriedade, os contratos; tudo o que você faz tem de estar enquadrado pela justiça, que dá garantias, que castiga ou que recompensa. Em Portugal, cada vez mais a desconfiança da justiça é maior.
Mas isso tem razão de ser? Não acha que estamos melhor do que há 20, 30 anos?
Não, acho que estamos pior. Basta ver, todos os dias, ainda ontem, anteontem, ainda agora todo o processo envolvendo o julgamento de um caso de corrupção que foi denunciado por um advogado, a maneira como se processou isto tudo. Temos o processo da Casa Pia, que continua há seis anos em espera, há profissionais ligados a este caso que têm hoje 45 ou 50 anos e que dizem que até à reforma vão ter a Casa Pia atrás, porque vai haver os recursos, tudo isso. Portugal foi muitas vezes condenado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por atraso e por justiça incompleta, por justiça deficiente.
O sistema democrático pode sobreviver à falta de confiança dos cidadãos na justiça do seu país?
Não sei se pode sobreviver ou não, mas que fica deficiente e que corre sérios riscos, fica. Na minha maneira de pensar, há três elementos essenciais para a democracia, para a minha liberdade. O primeiro é tudo o que diz respeito à urna, ao voto, ao Parlamento, às autarquias, à eleição das pessoas, à representatividade; a urna é o primeiro símbolo. O segundo símbolo - como estou diante de vocês, tenho de dizer a palavra expressa, a palavra escrita, a palavra impressa ou a estatística - é a informação; seja estatística, a dos assuntos do Estado, a dos assuntos colectivos, seja a informação de todos os dias dos jornais e da rádio. E o terceiro é o tribunal. São estes três elementos que a meu ver garantem e asseguram a democracia. No primeiro, no voto, está a correr. Ao contrário de quase toda a gente que conheço, considero que o 25 de Abril foi cumprido. Neste sentido, o 25 de Abril, o essencial e o fundamental do 25 de Abril, é a democracia. Voto; quem ganha governa; quem perde é governado; a maioria respeita a minoria; a minoria respeita a maioria; e há regularmente eleições. Isto é o 25 de Abril e está cumprido.
Mas não falta cumprir depois o voto? Para que é que ele vale? Quando diz que a justiça está nas mãos das corporações, significa que os governos não estão a cumprir o voto do povo nessa parte?
Mas estamos a entrar depois na qualidade do sistema político, na qualidade do sistema social, que é outra coisa. O 25 de Abril não foi feito para isso, foi feito para garantir a liberdade dos cidadãos e a democracia. Isso está garantido. Se nos governamos mal, se empobrecemos, nós estamos a empobrecer há dez anos - desde 2001, 2002 que Portugal empobrece realmente em relação à Europa e até mesmo, em certos anos, em relação a nós próprios -, isto não é culpa do 25 de Abril nem da liberdade, é culpa de maus governos, ou culpa de crises internacionais, ou culpa de uma sociedade com deficiências. Não é culpa da democracia, com certeza.
Falou do voto. Ia falar da informação.
A informação, em boa parte, acho que está cumprida. Temos uma informação livre em Portugal. Sei que há riscos, que há interferências, que há pressões. Sei isso tudo. Vocês sabem, nós sabemos. Mas o essencial, se quero dizer o que me apetece e o que penso, como estou a fazer agora, nada me impede. Po-de haver pessoas que não têm acesso por uma razão qualquer, porque não são conhecidas, porque ninguém quer saber o que elas pensam, porque dizem parvoíces; com certeza que há isso, porque tudo tem as suas regras. Mas não sinto nenhuma pressão, nenhum constrangimento na minha liberdade de pensar, na minha liberdade de me exprimir. Pode haver pessoas que tenham certos cargos e que, se dizem algumas coisas, podem depois ter represálias. Isso faz parte das sociedades modernas. Há problemas com a imprensa, com a estrutura da imprensa, rádio, televisão e jornais. No essencial informar corre bem e corre muito melhor o outro tipo de informação, que é a informação pelo Estado e pelas empresas - as empresas também têm responsabilidades em dar informação ao público.
por João Marcelino (DN) e Paulo Baldaia (TSF)
publicado na edição de hoje do Diário de Notícias
# A íntegra do programa Discurso Directo, emitido aos domingos, cerca das 11h 10, na antena da TSF: vídeo e podcast


