A propósito do mais recente estandarte que dá pelo nome de 'Revisão Constitucional':
Não o subscrevo na íntegra, mas é um bom e bastante sensato texto, este da Isabel Moreira: A guerra política onde deve haver consenso - essa nova arma: a revisão constitucional
Especialmente no que se refere ao modo como alguns se têm vindo a servir do pretexto da crise económico-financeira que o país atravessa para "mexer" na Constituição Portuguesa e a aliviar, discretamente, dos valores sociais que consagra.
Não serei certamente original, mas para que conste o que penso: não creio que uma nova Constituição seja aquilo que mais nos urja, neste momento. Bastaria tão só que os princípios nela inscritos fossem respeitados e já sentiríamos diferença suficiente
Não serei certamente original, mas para que conste o que penso: não creio que uma nova Constituição seja aquilo que mais nos urja, neste momento. Bastaria tão só que os princípios nela inscritos fossem respeitados e já sentiríamos diferença suficiente
O 25 de Abril e o desencanto da política
por Maria José Nogueira PintoFoi Hannah Arendt quem, há muitos anos, melhor previu e indiciou este fenómeno da decadência ou despolitização da política nas democracias liberais do Ocidente. Tendo sido uma das analistas dos totalitarismos e tendo então feito a equivalência moral entre o hitlerismo e o comunismo soviético, o que não era fácil nos anos 50, a pensadora dedicou também a sua atenção aos problemas da "qualidade política" das democracias ocidentais.
E chamou a atenção para esta degradação da política como espaço público que, cada vez mais, se foi diluindo.
O que ela viu foi este fenómeno de a economia - e dos interesses económicos - ir progressivamente abafando, monopolizando e degradando a política. Porque o sistema socialista marxista produziu sociedades policiais e até concentracionárias, e a estatização da economia resultou na supressão absoluta da política (da polis, como espaço de debate dominado pela preocupação pública). No Ocidente liberal, esse espaço público foi-se, a pouco e pouco, reduzindo, na medida em que as preocupações económicas (da oikos, da casa) se sobrepuseram, nos cidadãos, às preocupações políticas (da polis, da cidade). E este fenómeno agravou-se ainda mais com a luta das televisões concorrenciais por quotas de mercado publicitário, e com o fim da Guerra Fria, que removeu uma preocupação política e securitária das sociedades abertas, reduzindo ainda mais o espaço público.
Trinta e seis anos depois do "25 de Abril" não falta matéria de reflexão, a começar pela qualidade da democracia que temos, ameaçada de um perigoso desvirtuamento, antes mesmo de se ter consolidado. Por um lado assistimos ao progressivo esvaziamento social da representatividade e, por outro, à diluição dos fundamentos da democracia participativa e à descrença do poder dos cidadãos, tudo contribuindo para o desencanto da política e o início de um tempo de decadência em que é próprio deixarmos de pensar e limitarmo-nos a comentar, como dizia George Sorel. As novas tecnologias criaram, entretanto, uma sociedade descentrada e estruturalmente mediada. A nova opinião pública tornou-se caricatural, um produto fabricado pelos media, através de sondagens e inquéritos e a sociedade civil, os cidadãos e a cidadania perderam a heterogeneidade e substância conflitual que lhes é inerente. Em Portugal, neste preciso momento, questões da maior gravidade são submetidas ao discurso das imagens, revelando a profunda crise do discurso da representação.
Evocar o "25 de Abril" para além dos discursos oficiais permitiria perceber muito do que hoje se passa em Portugal. A história destes 36 anos nunca foi digerida pelas gerações que a viveram: o golpe de Estado, a revolução, o PREC, a descolonização, a nacionalização da economia, o pacto MFA-Partidos, que marcou geneticamente o quadro partidário português, a reprivatização da eco- nomia, a integração na Europa, a entrada na Zona Euro.
A perda do império como desígnio nacional e a sua substituição pelo Clube da UE, a própria crise da Europa e as novas ameaças que cada dia lançam mais sombras sobre o projecto europeu e dúvidas sobre a sua capacidade institucional para fazer face às mudanças que se sucedem perigosamente.
Um sistema político que parece ignorar que o mundo mudou e o nosso destino também. Uma Constituição que mantém a matriz de 76, que consagrou uma circunstância histórica e a blindou; leis eleitorais ineficazes e um estatuto da oposição deficiente; a relutância em discutir em sede própria os poderes do Presidente da República ou o nosso modelo parlamentar.
É tudo isto somado que explica, também, o nosso atraso. Comemorar o "25 de Abril" devia ser a catarse e a síntese de 36 anos de história colectiva. Expurgar atavismos inúteis, corrigir erros antigos e congregar os portugueses em torno do que pode ser, ainda, a herança comum: um país que se possa amar, um desenvolvimento centrado na dignidade das pessoas, uma coesão social assumida por todos e um Estado no seu lugar. link
A guerra política onde deve haver consenso - essa nova arma: a revisão constitucional
por Isabel Moreira
Já ecrevi sobre a falsa questão da revisão constitucional. Vem pelas mãos de Passos Coelho. Apresenta-a como um desígnio nacional, urgente, para já, antes mesmo das eleições presidenciais. Devagarinho, mesmo sem mencionarem a expressão "revisão constitucional", surgem vozes a montar um coro em torno do líder, como a voz de Maria José Nogueira Pinto, que, a propósito do 25 de Abril e da democracia, acaba o seu artigo de opinião assim: "Um sistema político que parece ignorar que o mundo mudou e o nosso destino também. Uma Constituição que mantém a matriz de 76, que consagrou uma circunstância histórica e a blindou; leis eleitorais ineficazes e um estatuto da oposição deficiente; a relutância em discutir em sede própria os poderes do Presidente da República ou o nosso modelo parlamentar.
É tudo isto somado que explica, também, o nosso atraso. Comemorar o "25 de Abril" devia ser a catarse e a síntese de 36 anos de história colectiva. Expurgar atavismos inúteis, corrigir erros antigos e congregar os portugueses em torno do que pode ser, ainda, a herança comum: um país que se possa amar, um desenvolvimento centrado na dignidade das pessoas, uma coesão social assumida por todos e um Estado no seu lugar."
Estas ideias repetem as de Passos Coelho. São um ataque velado exactamente àquilo que devia ser pacífico e nunca arma de arremesso político, isto é, a lei fundamental do Estado, que, como referi há tempos à rádio clube e, também, como Reis Novais explicou na SIC NOT, nada tem que ver com os "muros" que o PSD diz encontrar às suas propostas.
O que Maria José Nogueira Pinto afirma é uma aberração A Constituição não mantém, em nada, a matriz de 76. Só no início se podia falar de uma constituição dirigente, para usar as palavras de Gomes Canotilho. Com as revisões de 1982 e de 1989, isso desapareceu. Nem vale a pena falar da realidade da entrada de Portugal na União Europeia.
A Constituição que temos é idêntica às constituições do nosso espaço cultural. Consagra um Estado Social e basicamente pode ver-se nela inscritos os direitos fundamentais, a organização do poder político, a separação de poderes e a sua garantia. Nada, mas nada do que o PSD se propõe a fazer, que na verdade ainda é um pouco vago, é impedido pela Constituição. O texto que temos dá liberdade para cada força política que chega democraticamente ao poder decidir se quer mais ou menos Estado e por aí fora.
A Constituição é uma referência de unidade dos portugueses. Usá-la como arma política, à pressa, com as forças políticas a combaterem no terreno uma eleição presidencial é desastroso.
Uma revisão pode e deve ser feita, sim. Mas não pelos motivos invocados por Pedro Passos Coelho ou agora por Maria José Nogueira Pinto. Há sempre qualquer coisa a melhorar. Desde logo a questão da estabilidade do poder em caso de governos de minoria, introduzindo, por exemplo, a figura da moção de censura construtiva. Já escrevi sobre isso. A instabilidade governativa é inimiga de medidas estruturais, impopulares, inimiga da economia, etc. Mas disso ninguém fala, como bem explicou Reis Novais.
Preferem mitificar a Constituição, como se nela residissem os entraves a propostas sociais, económicas ou eleitorais. E sendo certo que a aprovação de cada alteração carece de 2/3 do Deputados, por quê lançar esta balbúrdia? É que, na verdade, basta os Deputados do PSD apresentarem um projecto de revisão para obrigatoriamente estar o processo iniciado e todos os outros terem de ser apresentados num prazo curtíssimo. Isto é maneira de rever seriamente o estatuto do Estado e da sociedade? Quando havia um acordo implícito de deixar o processo para depois das eleições presidenciais? Quais serão as propostas por arrasto dos outros partidos? Serão, como sugere Reis Novais, à conta do episódio do Estatuto dos Açores, uma alteração das autonomias? É sempre assim, não é? Querem ver que ainda acabam com o Representante da República que actualmente assina os decretos legislativos regionais, veta-os e requer a fiscalização preventiva? E depois? O vazio? Ou passará a ser o PRa ter essas funções? Já imaginaram, recordando o "drama estatuto dos Açores", quantos dramas políticos teríamos pela frente? Nao tenham calma, não..
Este desígnio de Passos Coelho seguido de vozes zangadas com um texto que era pacífico, que era um dos poucos referenciais de unidade dos portugueses, é um péssimo serviço ao país e vai-nos sair caro.
O único resquício revolucionário que a Constituição tem, para recorrente irritação do CDS, é o preâmbulo. Só que este não tem valor normativo. É simbólico. Não faz mal a ninguém.
Maria José Nogueira Pinto pode empenhar-se no que afirma no seu parágrafo sem mudar a Constituição. Pode mesmo amar o país. link


