«PEC: Plano de Extermínio dos Contribuintes»
por Miguel Sousa Tavares
O tão esperado PEC (Programa de Estabilidade e Crescimento) conheceu finalmente a luz do dia e a primeira coisa que se pode dizer é que nada era mais previsível do que o seu conteúdo. Sumário: os mesmos de sempre vão pagar mais para que os mesmos de sempre ganhem mais ou não percam nada.
56% dos portugueses, interrogados na semana passada numa sondagem do "Público", disseram acreditar, infelizmente, que Portugal pode mesmo entrar em falência, incapaz de assegurar o pagamento da dívida: o Governo pensa o mesmo e daí ter finalmente decidido pôr fim à brincadeira e enfrentar a realidade. Mas 46% dos portugueses, mesmo acreditando que a coisa está muito feia, declararam-se indisponíveis pessoalmente para suportar sacrifícios em prol das contas públicas (Kennedy não nos poderia governar). O Governo também pensa o mesmo e daí ter apostado em que os sacrifícios continuem apenas a ser suportados pelos de sempre: os poucos que não fogem ao fisco, que não dependem de favores ou subsídios do Estado, que abriram caminho pelo seu esforço, trabalho e mérito.
Os tais 'privilegiados', que Sócrates apontou como exemplo da injustiça fiscal e que agora vão ser massacrados com 45% de IRS, mais o corte nas deduções com a Saúde, a Educação e os PPR (com que aliviam a despesa do Estado nestes sectores), são o alvo falso de uma demagogia que pretende esconder o fundamental: o Estado gasta metade da riqueza do país e o país continua pobre. Em lugar de verem agradecido o seu esforço (em cinco anos, passaram de 40 para 45% do IRS e agora, juntando os impostos directos e indirectos mais a Segurança Social, vão passar a entregar 60% do que ganham!), os 'privilegiados' são tratados como se fossem eles os culpados pelo deboche financeiro em que temos vivido. Eles, os únicos que não fogem ao fisco - porque os outros, os do grande dinheiro, estão no abrigo de offshores, fundações ou sociedades feitas para tal, e a grande massa dos evasores, aqueles que, pagando podiam de facto fazer a diferença, são os coitadinhos que não passam facturas, falsificam o IVA e vivem em economia paralela e protegida pelo Estado. Por isso é que os que vão pagar 45%, representando apenas 1% dos contribuintes, respondem por 18% da receita do IRS. É em grande parte graças a eles que foi possível a este Estado voraz recolher mais receitas fiscais do que a própria despesa nos últimos dez anos (ou seja, cobrou mais do que necessitava), e ter aumentado a receita fiscal seis vezes mais do que o PIB (isto é, colectou impiedosamente os poucos que criaram riqueza para dar aos que nada acrescentaram). Ser generoso com o dinheiro alheio é, aliás, uma característica bem portuguesa: basta ver os salários e mordomias dos gestores públicos.
Não falo dos justamente assistidos - dos que vivem com pensões de 300 euros ou do meio milhão de verdadeiros desempregados. Falo, para começar, dos imediatamente acima, mas moralmente bem abaixo: dos que vivem dos esquemas do subsídio de desemprego enquanto mantêm empregos paralelos ou vegetam no café ou à porta do Estádio da Luz a dizer mal de tudo; dos 'biscateiros' que nunca passam factura nem pagam um tostão de impostos e se acham cidadãos exemplares; dos que cultivam as falsas baixas e arruínam o sistema de saúde público com doenças que não têm, exames de que não precisam e remédios que não pagam; dos que compram Mercedes com subsídios para plantar batatas ou produzir 'arte' ou gravuras paleolíticas. E falo dos ainda mais acima na escala dos assistidos: dos que oferecem robalos em troca de telefonemas, andares recuados em troca de urbanizações e milhões em offshores em troca de subtis alterações às leis. Falo, enfim, de todos os que vivem à conta e não sabem viver de outra maneira, dos tais 46% que se declaram soberbamente indisponíveis para aceitar sacrifícios - com a certeza adquirida de que os 'outros' é que têm de o fazer. São esses que o PEC protege.
Mas o PEC também continua a proteger o despesismo do Estado. É certo que - finalmente! - já houve um recuo em relação ao delírio keynesiano do primeiro-ministro com as obras públicas, que só criam emprego enquanto duram, mas deixam dívidas para muitos e muitos anos. Suspenderam-se os TGV Porto-Vigo e Lisboa-Porto (este, o único que fazia sentido) e as inúteis cinco novas auto-estradas projectadas, ao mesmo tempo que se pôs fim a quase todo o esquema das SCUT - e nisso espera-se poupar €6000 milhões nos quatro anos. Mas manteve-se o ruinoso TGV para Madrid, o novo e desnecessário aeroporto de Lisboa e a respectiva ponte sobre o Tejo. (O Porto tem razão nos protestos: só Lisboa é que continua em festa). Sem o aeroporto, sem o TGV para Madrid, sem a nova ponte e o terminal de Contentores de Alcântara, e sem o segundo submarino, poupar-se-iam mais uns €10.000 milhões.
E muito mais se pouparia ainda com algumas medidas de higiene financeira, tais como o fim das parcerias público-privadas, a redução aos casos estritamente necessários do recurso a consultadoria externa, a proibição expressa e consequente responsabilização cível e criminal de quem autorizasse a sistemática derrapagem de custos nas empreitadas e adjudicações ao Estado e o controlo apertado do endividamento das empresas públicas, com responsabilização salarial dos seus gestores. E isto, esperando que o endividamento zero das autarquias seja mesmo para cumprir. O congelamento inevitável dos salários da função pública (se é que o Governo, depois da vitória dos professores, vai conseguir aguentar a rua e os sindicatos), e a sua progressiva e justa equiparação aos restantes trabalhadores quanto à idade da reforma, só podem ser politicamente sustentáveis se não continuarmos a ser diariamente confrontados com os maus exemplos que vêm de cima.
Vá lá que finalmente se avançou para a tributação das mais-valias bolsistas, cuja isenção era um verdadeiro escândalo. Mas continua a ser infinitamente mais rentável ganhar dinheiro a especular do que a trabalhar. E continuo sem perceber porque é que a banca só paga, no máximo, 12% de IRC, enquanto outros pagam duas ou três vezes mais a trabalhar e o próprio porteiro do banco é capaz de pagar mais do que isso.
Tudo visto e revisto, e ainda a quente, a notícia é esta: como seria de esperar, é a classe média, os trabalhadores independentes e os maiores pagadores de impostos individuais que vão pagar pelos desmandos alheios. São os que menos sobrecarregam o Estado e mais o financiam que vão ser penalizados por uma situação para a qual em nada contribuíram e da qual nada beneficiaram. Mas a história ensina-nos que o massacre da classe média conduz inevitavelmente à ruína das nações. Oxalá a história abra uma excepção connosco, porque está visto que não sabemos viver de outra forma e nem ao menos temos a coragem dos necessitados. Quando e se esta crise financeira do Estado for ultrapassada ou contida, manter-se-á o agravamento dos impostos que agora dizem excepcional; a clientela larvar do Estado chegar-se-á outra vez à frente a reivindicar negócios, subsídios e apoios e tudo voltará à mesma, até nova crise. Aí, faz-se novo intervalo e aumenta-se mais ainda os impostos aos mesmos de sempre. Até ao dia em que eles estoirem e não haja ninguém para pagar a conta. Já faltou mais.