Declarado aberto o precedente que permite chicotear mulheres na Malásia
Os rotan ou rattan usados para punições corporais na Malásia decretadas pelo Charia . São humedecidos antes de serem usados o que provoca golpes ainda mais dolorosos
No dia 9 de Fevereiro, três mulheres malaias foram punidas, duas com seis vergastadas, outra com quatro, numa prisão nos arredores de Kuala Lumpur, por terem mantido relações sexuais fora do casamento. Foram as primeiras no país a receber uma sentença deste tipo, em cumprimento da Charia, a lei islâmica ali vigente.
A notícia fez eco discreto em Portugal e apareceu hoje no Correio da Manhã, juntamente com os 'tranquilizadores' esclarecimentos prestados em conferência de imprensa por Hishammuddin Hussei, ministro do Interior malaio. Sossega-nos ele a todos, afirmando que:
E para que não se pense que descurou o caso, acrescenta:
Garante ainda que:
E frisa:
[As mulheres] foram examinadas, antes e depois de serem chicoteadas, para certificar que nenhuma se encontrava grávida e que todas estavam devidamente vestidas de acordo com o código de vestimenta islâmico aconselhado para a posição do infractor quanto é chicoteado.
E para que não se pense que descurou o caso, acrescenta:
O encontro com as três mulheres, após a aplicação da sentença, revelou que não sofreram ferimentos em resultado do castigo e que os golpes e nódoas negras apenas causaram dores.
Garante ainda que:
[As três] disseram que as chicotadas tiveram um impacto profundo sobre elas porque as fizeram arrepender-se e lamentar os seus actos incorrectos. Estas mulheres esperam que outros muçulmanos se coíbam de fazer coisas que são proibidas pela religião.
E frisa:
Espero não haja mais contestação à sentença ao chicote que a Charia tem o direito de impor às mulheres muçulmanas, ao ponto de afectar a pureza do Islão. A punição serve para os que ofendem se arrependerem e conseguirem o perdão de Alá. Existe para educar os muçulmanos a seguirem os ensinamentos do Islão.
Quando li a notícia, para além do repudio imediato e de me confrontar novamente com todo um conjunto de indignações, houve qualquer coisa que me chamou a atenção, qualquer coisa que não batia certo. Li de novo. O texto é curto e vago, mas um pormenor me chamou a atenção: a data da aplicação da sentença. Olhei melhor e logo vários outros se somaram e causaram igual ruído: o facto de ter havido uma conferência de imprensa, por exemplo. Passo a explicar: se as mulheres foram chicoteadas no dia 9 de Fevereiro, porque motivo um ministro sente necessidade de convocar uma conferência de imprensa tantos dias depois?
Resolvi investigar um pouco na imprensa local. Podia ter-se dado o caso de só agora uma informação já antiga na Ásia ter chegado à ponta da Península Ibérica. Mas não. Também nos jornais da Malásia como na restante imprensa internacional que publicou sobre o assunto a data concordava: 17 de Fevereiro. Ora como em qualquer parte do mundo não há nenhum jornalista que assista a uma conferência de imprensa para a noticiar uma semana depois, suponho que se terá realizado quanto muito na véspera. Donde a minha estranheza persistia: porquê vir um ministro anunciar publicamente a aplicação de uma pena tantos dias depois de ter sido consumada?
É que a história, porém, não se fica pelo que vem relatado no Correio da Manhã. É bem mais ampla e grave. Ao inaceitável da punição aplicada e dos esclarecimentos do ministro, junta-se um outro, que tem a ver com um quarto caso, o de Kartika Sari Dewi Shukarno, de 33 anos e mãe de duas crianças.
A 11 de Julho do ano passado Kartika Sari Dewi Shukarno foi apanhada a beber cerveja num bar de hotel. Foi presa e, no dia 20 de Julho, condenada a pagar uma multa e a submeter-se a um castigo de seis chicotadas. O consumo de bebidas alcoólicas é legal no país, mas está proíbido aos muçulmanos. Quando ouviu a sentença Kartika enfrentou o tribunal, dizendo-se preparada e desafiando-o a chicoteá-la em público.O caso conseguiu a atenção dos media e suscitou a intervenção de várias organizações de defesa dos Direitos Humanos.
Na Malásia coexistem dois regimes judiciais. A par com os tribunais civis (sob cuja alçada recai a minoria indiana e chinesa) existem os Charia (destinados aos muçulmanos, que representam 60% da população) e que possuem poder e autonomia para punir o que considerarem ofensa religiosa. Essa autoridade é válida mesmo tratando-se de estrangeiros, como sucede com Kartika que é natural de Singapura. Uma vez em território da Malásia, os ditames da Charia são-lhes extensivos.
Importa lembrar que a aplicação da lei Islâmica na Malásia é cada vez mais frequente desde as eleições de 2008, especialmente com o partido conservador islâmico PAS a ganhar terreno dentro da coligação no poder. As tensões sociais e religiosas tornaram-se, aliás, uma constante desde então (aqui e aqui).
No vasto debate interno que o caso Kartika desencadeou, várias vozes vieram alertar para o risco do país, até agora tido como moderado, estar a importar um regime de costumes típico do Médio Oriente. Neste sentido, era argumento central no pedido de revisão da sentença decretada a Kartika o facto deste tipo de pena nunca ter sido aplicada na Malásia, com vista a evitar a abertura de um precedente.
Amnesty International and other campaigners have urged the courts to drop the sentence, saying it was "cruel, inhuman and degrading punishment and prohibited under international human rights law". Amnesty said that at least 34,923 migrants, mainly from South-east Asian countries, were caned in Malaysia between 2002 and 2008 for immigration offences. "They have been doing it with some gusto," Amnesty's Asia director, Sam Zarisi, commented. "Usually these sentences are carried out on migrants. This is the first time a woman will have been caned, and the first time someone will have been caned under sharia law. It's an unfortunate direction."
via The Independent
E é aqui que a notícia das vergastadas aplicadas nos arredores de Kuala Lumpur às três mulheres se revela ainda mais sórdida. Do mesmo modo que a informação «foram as primeiras no país a receber uma sentença deste tipo» adquire uma relevância muito maior do que, à primeira leitura, parecia ter.
Percebe-se então claramente porque razão o ministro entendeu que a conferência de imprensa se justificava e fez tanta questão em anunciar publicamente que a sanção já fora aplicada no dia 9 de Fevereiro: para acabar de vez «com tanto 'hype'» em torno do caso de Kartika.
O aparente cuidado com os ferimentos causados nas três chicoteadas é ainda mais hipócrita do que a congratulação com a ausência de «sofrimento» provocado pelos «golpes e nódoas negras» nos corpos das condenadas. Porque na realidade já não são as três mulheres punidas nos arredores de Kuala Lumpur que interessam ou preocupam o ministro. Não é sobre elas, ou por causa delas que fala e convocou a conferência de imprensa. É por causa de Kartika: para a desenganar em relação à revisão da sentença que a condenou a uma pena igual. Para a informar que o argumento da abertura de um precedente não colhe, uma vez que ele já foi aberto. Para lhe comunicar que afinal não será «a primeira mulher» a chicotear na Malásia. Antes dela já outras três o foram e outras mais se seguirão, se for o caso.
E se dúvidas restassem, ele próprio as tira:
People are saying that no woman has been caned before and that Kartika should not be caned. Today I am announcing that we have already done it (caned women).
Ingenuidade a minha, a de me indignar apenas em nome das três mulheres chicoteadas. Faltava ainda Kartika e todas as outras que, no futuro, passam a poder incorrer numa pena igual.
Kartika Sari Dewi Shukarno com os filhos Muhammad e Kaitlynn, de 7 e 5 anos
Kartika trabalhava num hospital, mas a vergonha que a sentença lançou sobre ela fê-la perder o emprego e impede-a de exercer outra profissão. Para sobreviver aceita trabalho de modelo em part time
O retardar da aplicação da sentença impede-a de sair da Malásia e custou-lhe também o casamento. O marido alegou a sua ausência de Singapura e,entretanto, exigiu o divórcio. Kartika já só pede um desfecho rápido para o seu caso e sonha com o dia de fazer uso do pack de 14 dias que a agência de viagens Gemilang 'gentilmente' lhe ofereceu para ir rezar a Meca e se reconciliar com Alá.
Posted by por AMC
on 21:04. Filed under
coisas que dão que pensar,
ESPUMAS,
mire-se naquelas mulheres
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