Entrevista | Caetano Veloso aceitar falar de si
Há quase meio século sob as luzes da ribalta, Caetano Veloso diz que não tem talento especial para a música. O cantor em entrevista, durante a qual até cantou para as entrevistadoras do Expresso.
Entre todos os músicos brasileiros da sua geração, Caetano foi aquele que nunca perdeu a inquietude de acompanhar o seu tempo, nem a tentação de pertencer à contemporaneidade.
As confissões soltas mostram-nos um homem atento ao seu envelhecimento e deliciado com o facto de estar vivo. Nesta conversa assume que o "amorzinho" não o deslumbra. Como compositor, a sua cena é a língua portuguesa.
Foi isso mesmo que o trouxe a Portugal, para participar num encontro na Casa Fernando Pessoa e festejar o cinquentenário da primeira edição da "Mensagem". Nos dias em que passou por Lisboa, voltou aos fados. Um ritual de que não abre mão.
Desta vez não se ficou pelo Sr. Vinho e pela voz de Maria da Fé. Quis conhecer Lula Pena, cantora que descobriu na Internet.
O Expresso foi ao encontro de um Caetano cheio de frio, encolhido como qualquer carioca que revela todo o despreparo tropical para os Invernos europeus. Apeteceu-nos saber o que realmente interessa a este homem de 67 anos, passadas tantas músicas inesquecíveis. Descobrimos um senhor que não consegue separar-se dos seus livros e que vive numa casa "atafulhada" de coisas que não deita fora. Na mala para Lisboa, trazia Fernando Pessoa. O filósofo, não o poeta.
Vamos começar esta conversa com uma charada: Que pergunta faria Caetano a Caetano Veloso?
Assim, de repente, não me ocorre nada. Quando venho para uma entrevista não imagino antecipadamente o que me irão perguntar. Nunca sei a conversa que vai acontecer.
Não nos dá essa chave? Precisava de ter pensado nisso antes. Interessam-me sempre muitas coisas, mas para vos dar essa chave, era necessário estar num período da minha vida em que tivesse uma preocupação do tipo: "Eu queria tanto dizer alguma coisa na qual não se toca!"
Em que pensa quando fica acordado nas suas longas noites de insónia, que vai adormecendo e acordando, tal como nos contou há pouco? Nessas noites eu leio. Leio muito. Às vezes, ligo a televisão e procuro um filme que me interesse.
É então nas letras e nas músicas que escreve que lhe vão surgindo as suas interrogações? E também nas conversas que tenho, nas entrevistas que dou, nas coisas que faço... Mas, sim, as músicas vão dizendo coisas. Às vezes são encomendas de cantores, outras sou eu que quero fazer um disco novo e penso que seria interessante ter uma canção com este ou aquele cara, dizendo isso ou aquilo na letra. O próprio fazer da canção acaba por nos levar para uma outra coisa que ainda não tínhamos imaginado.
Como compositor, é sobretudo um racional. Nunca poderíamos dizer que Caetano é um letrista romântico, pois não?
Não sou muito, não.
Porquê?
Temperamento.
Mas as letras também são feitas de emoções.
E também é verdade que as palavras se referem a coisas. Não faço jogos abstractos.
Fernando Pessoa dizia que as cartas de amor eram ridículas. O "amorzinho", para si, não se converte em poesia. É por achar ridículo?
Não é justo dizer isso. Tenho até demasiadas canções de amor. 'Você É Linda', 'Branquinha', 'Eu Te Amo', 'Meu Bem Meu Mal'...
É verdade, mas a mulher não tem a mesma força como estímulo de inspiração como tem, por exemplo, o mundo ou a urbanidade. A mulher e o homem são uma inspiração.
O romance, nem tanto.
Como é o seu processo de compor, começa por construir letras criando imagens? São as palavras que se puxam umas às outras? Certas letras suas são um verdadeiro transe com a linguagem e com a sonoridade das palavras.
(Longa pausa.) Palavras que se puxam umas às outras, imagens que sugerem outras imagens e que também me vêm à cabeça... O processo de trabalho depende de muita coisa e as canções nascem de muitas formas. Nascem em períodos diferentes e também em dias diferentes. Algumas nascem porque deliberadamente decidi fazê-las, outras acontecem porque começo por pensar numa música e vou fazendo.
Nesta fase da sua vida, o que o motiva no sentido de continuar a escrever? Já escreveu tantas letras...
Penso muito nesta ideia: com tantas canções que existem neste mundo, qualquer um se deveria perguntar porquê fazer mais uma canção? Porque é uma loucura! Oiço muitas músicas antigas, mas a verdade é que também oiço muita coisa nova. Continuo a ter curiosidade.
O que anda a ouvir agora?
No Brasil estava a ouvir Arnaldo Antunes e uma banda de rock indy que se chama Cidadão Instigado. Mas também a cantora espanhola Buika e a banda americana Dirty Projectors, e Animal Colletive, TV on The Radio... Adoro a música da Beyoncé 'All The Single Ladies'. Acho-a linda. E, claro, sempre João Gilberto, Billie Holliday, Ray Charles, Ella Fitzgerald.
É o hábito. Sempre fiz. Não vejo uma razão nítida para interromper. Seria até uma coisa um pouco bruta na minha vida. No outro dia, aqui em Lisboa, estava a conversar com uma cineasta que me dizia que se as pessoas parassem de escrever romances, ou de fazer artes plásticas, não acontecia nada, mas se deixassem de fazer música o mundo desabava. Curioso, não é? Santo Agostinho, por exemplo, sonhava libertar-se. Sentia muita culpa no prazer que tinha em ouvir música, mesmo que fosse sacra. É uma coisa estranha a relação que as pessoas têm com a música, que, no entanto, é a arte mais racional de todas. Música é matemática.
Nesta passagem por Lisboa, acabou por apresentar o seu filme "Cinema Falado" na Cinemateca. Foi realizado em 1986. Desde então não voltou ao cinema, que foi um grande desejo durante anos.
É verdade. Um desejo enorme!
Pensamentos sobre cinema, quando estou sozinho, aparecem tantos quanto a música, porque também tenho desejo de fazer filmes. Mas a música é o meu trabalho. De repente estou ensaiando, fazendo tournée, existe a banda, lembro-me do que é preciso corrigir, qual o arranjo que devo fazer... Ao longo da minha vida esbocei projectos de cinema que abandonei. Mas de vez em quando o desejo volta. Às vezes é intenso, outras fica amortecido. É complicado. Parece que tenho mais vocação para a vida de músico do que para a de cineasta.
Sempre referiu que a música surgiu por ser mais fácil e não por ser o seu maior talento.
É verdade quando digo que não tenho talento para a música. Tenho é vocação para a situação de músico.
O que quer dizer?
Tenho vocação para a vida de músico: conviver com outros músicos, viajar, fazer a música sozinho no violão, ensaiar com amigos, apresentar, gravar... Gosto disto tudo. Sei que tenho mais vocação para esta vida do que para a vida de cineasta e que eu próprio vivenciei quando fiz o meu filme.
Teria medo de não ser no cinema o grande Caetano que é na música?
Não. Disso nunca tive medo. O que senti quando experimentei a vida de cineasta foi um pouco de angústia, porque o ambiente do cinema me parecia muito tenso. Para se fazer um filme é preciso dinheiro. Quando um cineasta tem uma ideia, tem de convencer outras pessoas de que a sua ideia vale a pena, para arranjar quem invista. Isto é um problema chato e que não existe com a música. Você pode pegar no violão, fazer a sua música sozinho e acabou. Poderá depois ter dificuldades em lançar-se e ser reconhecido. Mas isso já é outra história.
Explique melhor a questão do seu talento, ou daquilo a que chama a sua falta de talento para a música.
É muito simples. Tenho amigos que têm uma capacidade de percepção harmónica inacreditável. Gilberto Gil, Djavan, Lenine, Edu Lobo, Dori Caymmi, Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco... Todas estas pessoas que conheço de perto têm um talento especial e uma facilidade enorme em lidar com a matéria musical - percepção, harmonia, regularidade rítmica. Seria um crime não fazerem música. Não tenho nem de longe o talento musical que qualquer um deles tem. E não estou a ser modesto. É uma questão de observação. Sei que eles sabem que isto é verdade e que também não discordariam de mim.Portanto, esforça-se. Faço algum esforço. Também não chego, musicalmente, a lugares notáveis. Mas faço canções relevantes. Existem as palavras. E no meu jeito de resolver as coisas, dentro dos recursos limitados que tenho, vai sempre saindo alguma coisa.
No Brasil é um artista polémico. Chico Buarque, por exemplo, reúne maior unanimidade.
O Chico é muito discreto. Não é "falastrão" como eu, nem fez um trabalho de enfrentamento como eu fiz. Porque o tropicalismo era um trabalho de afrontamento! Era a oposição ao que havia. O que o Chico fez foi um aprofundamento da tradição à luz da bossa nova. Ele criou uma pós-bossa nova, altamente requintada, irrepreensível, mas feita por um sujeito que não tinha nenhuma vontade de criar discussões. Acabou, porém, por ter uma perseguição por parte da censura na ditadura militar que eu nunca tive. A minha música nunca encontrou aquele nível de censura. Mas também ele não reúne unanimidade absoluta.
Chico Buarque não provoca tantas reacções como o Caetano. A si, criticam-no muito. Porque ele não vive dizendo coisas como eu digo. Mas não me incomodo. Sou assim mesmo. Acho até estranho reunir a aprovação de todos. Só Estaline, Mao e Hitler gostavam de ter a aprovação de todos. Não é bom.
Mas fora do Brasil será provavelmente entre todos o mais popular.
Fora do Brasil sou conhecido em circuitos minoritários, mais intelectuais. Pode não ser assim em Portugal, mas nos outros países da Europa é. Mesmo em Itália, onde há um número muito grande de pessoas que gostam de mim, é sempre um nicho de mercado.
Não. Quando acabo de fazer um disco, deixo de ouvi-lo.
Quem acompanha a sua carreira desde o início diz que raramente volta às músicas feitas em Londres, no final dos anos 60, quando esteve exilado. São considerados, pelos seus fãs, dá álbuns mais inovadores. Porque tem essa dificuldade?
É engraçado porque esses discos voltaram a ser os discos preferidos dos mais jovens. Sobretudo "Transa", que é sempre o disco preferido dos amigos do meu filho de 17 anos. Acho isso maravilhoso. A primeira menção ao reggae feita por um brasileiro é minha, nesse álbum. Nesses anos de exílio em Londres Caetano Veloso foi obrigado a sair do Brasil, entre 1969 e 1972, durante a ditadura militar, eu vivia em Notting Hill Gates, que naquela época não é o que é hoje. Era um bairro muito barato, cheio de jamaicanos, muito misturado. Era lá que acontecia o reggae. Nós, brasileiros, sentíamo-nos ali mais à-vontade. O que aconteceu no "Transa", o que faz dele um disco tão especial, meio fora do esquema, foi eu ter chamado músicos brasileiros e juntado numa banda. Tudo aquilo tem uma atitude, que era uma coisa que vinha directamente do tropicalismo. Também por isso ficou com aquele ar fora do mundo. É como estou a fazer agora, que voltei a essa coisa da banda quando fiz este meu último álbum, o "Zii, Zie".
Em 2010 volta a fazer uma digressão mundial. Vai lançar um novo álbum? Como será?
Sim. Estou a trabalhar com a banda Cê. Vou fazer um terceiro disco com eles. Quero fazer, pelo menos, uma trilogia.
O que o inspira? Quando quer descobrir o que se anda a produzir de novo no mundo, para onde olha?
A vida é um encantamento. Há sempre muita coisa nova. Mas sinto muita vitalidade no Brasil. Há ainda uma originalidade... Parece-me que o Brasil tem uma tarefa a cumprir.
Que tarefa?
É uma tarefa grande: salvar o mundo. É curioso, porque sinto isto desde garoto. Quando, em 1986, fiz "Cinema Falado", o meu filho, que na altura tinha 8 anos, aparecia a dizer: "O Brasil ainda não chegou ao século XIX, mas vai ser o primeiro país do século XXI." Isso já era uma coisa minha. Embora em muitos aspectos o Brasil seja um lugar horrendo, tem agora uma oportunidade.
Mas o que tem o Brasil de tão especial que lhe caiba a tarefa de "salvar o mundo"?
Atribuo parte disto ao facto de o Brasil ser a América portuguesa. Termos dimensões continentais, sermos os únicos a falar português no continente americano, sermos uma população altamente miscigenada, o que é geralmente visto como uma desvantagem. Mas, para mim, esse conjunto de desvantagens sempre foi lido como uma bênção. O isolamento do Brasil no continente, este ensimesmamento... Sempre senti isto desde que me comecei a entender por gente, como brasileiro. Quando, com 17 anos, ouvi pela primeira vez João Gilberto cantar, percebi que tínhamos de reconhecer que as nossas desvantagens nos apontavam para uma grande originalidade criativa. E que isso era uma grande tarefa. Uma tarefa boa.
Como vai o Brasil cumprir esta tarefa?
Não sou um profeta. Não tenho visões.
"Aquilo que nesse momento se revelará aos povos/ surpreenderá a todos não por ser exótico/ mas pelo facto de poder ter sempre estado oculto/ quando terá sido o óbvio"... Como será, eu não tenho a menor ideia, mas tenho a certeza de que se for feito, vai mesmo parecer o óbvio. A gente sabe o que quer e o que precisa.
Vê alguém para liderar essa missão?
A minha candidata à Presidência da República, Marina Silva, é em parte índia. Veio de dentro da floresta. Saiu da penúria extrema, do analfabetismo e tornou-se uma mulher que escreve bem. Ela, simbolicamente, seria importante, porque representa uma vida de superação. É mulher, alfabetizou-se aos 16 anos e é mestiça.
Que afinidades sente com Portugal?
Sempre senti afinidade e sempre foi uma coisa muito concreta. Aos 9 anos, em Santo Amaro, eu cantava fados. Comecei por ouvir Ester de Abreu, na Rádio Nacional, e depois foram os discos da Amália Rodrigues. Foi o primeiro lugar a que eu vim fora do Brasil, em 1968. Tinha uma grande emoção de conhecer a pátria da língua portuguesa.
Viu um Portugal muito atrasado.
Era triste. Mas eu amei!Muitos brasileiros não gostam dessa relação com o passado. Não me identifico com essas pessoas. Não é esse o ambiente da minha casa, nem a tendência dominante de quem me cerca. Para mim, Portugal e Brasil são uma coisa só. Adoro a "Mensagem", é um dos mais gloriosos poemas. Penso como os sebastianistas. Portugal é este gesto de ter saído para o mar todo, ter criado o globo terrestre e ter-se desdobrado em Brasil, Angola, Moçambique, Goa, Cabo Verde... Considero uma grande interpretação da "Mensagem" o livro de Agostinho da Silva. Ele também era um sebastianista, e escreveu-o no Brasil. Termina o livro falando nas festas do Divino em Santa Catarina. É emocionante. Conheci o professor Agostinho, na Bahia, e todas estas coisas influenciaram-me muito porque, intuitivamente, tive sempre essa visão.
E quem vai cumprir o Quinto Império, segundo o seu raciocínio, será o Brasil.
O Brasil vai liderar a passagem do Quinto Império. É um sebastianismo moreno e tropical.
Não me incomodo. Vai dar ao mesmo. Falamos português. Já houve várias investidas nesse sentido, até no Brasil, e só aprovo isso na letra de Noel Rosa, um samba divino que diz: "Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro. Já passou de português" (risos).
Aos 67 anos o que o impressiona?
Quase tudo.
Preocupa-se com o que ainda tem para fazer?
Um pouquinho. Mas preocupa-me menos agora do que quando era moço. Ainda planeio um pouco, mas, se deixar no piloto automático, vai andando. Mas não tenho é o desejo de deixar no piloto automático.
O envelhecimento incomoda-o?
Conta muito, como não? É uma coisa importante, mas também é normal e inevitável. Se a pessoa não morre, envelhece. Nesta perspectiva, o envelhecimento é uma das coisas boas que acontece a alguém que está vivo. É uma tolice querer colocar tudo na conta da velhice. Posso ter 75 anos e estar mais feliz do que quando tinha 32. Evidentemente que implica muitas coisas más, como a decadência das capacidades físicas. É ruim, mas todo mundo aguenta. Sempre houve velhos e não estão todos desesperados. A minha mãe tem 102 anos, é lúcida e muito alegre.
Já foi casado duas vezes, agora não partilha o seu apartamento do Leblon com ninguém. Assusta-o a possibilidade de ficar sozinho?
Não tenho medo disso, não. É natural. Já estou velho. A infância mete mais medo do que a velhice. Um menino de 7 mostra grande desprezo pelo de 4 e o de 11 pelo de 7. Todos querem sair daquela coisa o mais rápido possível. A infância só é maravilhosa quando temos autonomia e nos lembramos daquele tempo de irresponsabilidade, em que tomavam conta de nós. Aí idealizamos a infância. Mas, na realidade, é horrível: ter de comer, de deitar e fazer tudo na hora em que nos mandam! Acho a adolescência o início da alegria. As angústias da adolescência são uma maravilha! Os nossos filhos, adolescentes, passam então a receber com alegria os nossos visitantes.
Viveu a sua adolescência como uma grande festa?
A minha, não. Foi bem tímida e muito limitada. Estou a falar da adolescência de um modo geral, essa mera sensação de estar no mundo, que vejo mais bem resolvida nos adolescentes de agora.
Todos nós, em algum momento, fomos tocados por uma canção sua. E eu tenho de lhe dizer isso: você esteve presente na nossa vida inteira e na de muitos dos nossos amigos também. Tem consciência desse lastro da sua presença? O que é que isso representa para si?
A maior parte do tempo não me lembro. Mas, às vezes, ocorre-me de uma maneira enviesada e outras até mais directamente, quando me perguntam, tal como você está perguntando agora, e isso emociona-me. Mas não me sinto pressionado. Quando penso nisso, reconheço que há uma responsabilidade, e aí sinto uma espécie de amor pelas pessoas. Por terem conseguido chegar perto das coisas que por mim foram feitas tão intimamente.
via O Expresso
Sábado, 26 de Dez de 2009
Posted by por AMC
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