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A diplomacia traumatizante do Instituto Camões

Sob o calor abrasivo de Julho, dirijo-me ao Instituto Camões com algumas informações que necessito de obter bem elencadas na algibeira. Vou andando devagarinho, a coberto da sombra dos plátanos da Rodrigues Sampaio, porque fecha às 17h30 e pouco passa das três da tarde.
Uma vez lá chegada, o segurança interpela-me sobre o assunto. Digo ao que venho. Ele responde: «Pois, Minha Senhora, isso agora!... Sinceramente não sei o que lhe responder.» Explico que não espero que seja ele a ter as respostas a que vim e que pretendo apenas que me encaminhe para quem de direito no edifício. A contra-gosto, lá pega no auscultador do telefone, marca um número e, depois de mil desculpas à «doutora» para quem liga, pede ajuda «tenho aqui uma senhora que precisa de informações» sobre tal e tal: «por acaso não sabe quem é que trata disso, não?! Ah!... e não pode ser com a doutora? É que não sei para onde mandar a senhora, sabe?!». Na sequência, estica o fio, brame o auscultador na minha direcção e diz: «Fale aqui com esta doutora, se não se importa.» Pego no telefone. Do outro lado uma voz apressada, perceptivelmente aborrecida com o contra-tempo de ter que me atender,  incita-me a dizer depressa ao que venho: «é que, sinceramente, isto é um dia péssimo, não calha mesmo nada bem!». Explico. Surpreendentemente, em vez de me responder ou encaminhar para alguém que o possa fazer, despacha-me a toda a velocidade: «Ó minha senhora o nosso público alvo são os estrangeiros. Não nos interessa nada receber e perder tempo a falar com portugueses, percebe?!.» A única coisa que me ocorre à perplexidade é confirmar se o Instituto Camões não tem por objectivo a língua e a cultura portuguesas. Ela insiste: «Sim, mas só nos interessa dialogar com estrangeiros. A senhora não é portuguesa?! Pois, está a ver?... O melhor é procurar as informações que precisa, sejam lá elas quais forem, junto de outro organismo. Além do mais isto hoje é um dia muito complicado, estamos sem tempo nenhum e a altura não podia ser pior.» Por coincidência os olhos percorrem a inscrição gravada a letras douradas na porta do guarda-vento da entrada onde se lê, sob a sigla: "Ministério dos Negócios Estrangeiros". Estou de boca aberta. «Portanto, não vale a pena dizer-lhe para subir a andar nenhum, nem que fale com alguém. E se me dá licença, tenho mesmo que desligar porque o dia hoje está de loucos!». Bate o telefone sem mais e deixa-me estonteada com o exemplo de extraordinária diplomacia em plena portaria.
Saio do edifício. O porteiro já regressou às páginas do jornal desportivo, um cotovelo preguiçoso apoiado na secretária, o queixo apoiado mole na outra mão, e boceja não sei se pelo calor da tarde, se pela falta do que fazer ou se pelo pouco entusiasmo suscitado pelas notícias. Vou caminhando pelo passeio a tentar organizar no cérebro os últimos minutos, revendo atordoada o que se passou e o resultado surreal da minha incursão no Instituto Camões. À inutilidade da viagem soma-se a indignação pela forma como fui recebida. Estou a chegar ao fundo da rua quando me dou conta que nem tão pouco sei com quem falei porque em nenhum momento me foi dito. Sem sequer pensar, resolvo voltar atrás. Estuco o passo, torno a empurrar as portas do guarda-vento e exijo ao segurança que me diga com quem falei. «Então, minha senhora, falou com uma doutora!». Sim, mas que "doutora"? Como se chama a pessoa com quem falei e qual é o seu pelouro? O segurança fecha o jornal, tacteia a lista das extensões telefónicas, corre a unha sobre a folha plastificada em busca da linha exacta e, com ar vitorioso, atira um nome que fica a ecoar na pedra do hall de entrada. Insisto: e qual é o pelouro dessa "doutora"? «Então, é a principal». A "principal"? «Pois, a directora. Acho eu...! É a "doutora" de tudo: a que manda.» Esclareço-o: a directora não pode ser porque o nome não é esse. Insisto: qual é o cargo e o pelouro da senhora com quem falei. Traduzo por miúdos: como é que eu posso saber que falei cm a pessoa certa, com a pessoa indicada para responder às minhas perguntas? Como é que eu posso sair do Instituto Camões sem sequer saber o nome da pessoa com que me prestou aquela indicação? Que garantia tenho de não ter ido lá em vão e de que fui correctamente 'informada'? «Ah, espere aí!... É chefe de serviços, não é directora. Pronto: é chefe de serviços. assim é que é.» Chefe de que serviços? «Isso não sei!». Gira a folha na minha direcção: «Está a ver? Diz aqui. Mas só diz que é chefe de serviços, o resto não sei». Então veja, por favor, a quem mais tem que ligar para saber porque não vou sair de cá segunda vez a desconhecer se falei com a pessoa certa para tratar do assunto que aqui me trouxe. Novo périplo de chamadas por várias extensões, enquanto se vai justificando: «Era mais fácil ligar-lhe a perguntar, mas é capaz de ser chato.. Ela é capaz de ficar ofendida por eu não saber quem ela é. Ou melhor, eu sei: passa aqui todos os dias à porta. Mas só a conheço de cara, não sei o que é nem o que faz, está a perceber?!» Sim, mas se ninguém lhe disse, se não lhe disponibilizam essa indicação, como é que podem ficar ofendidos por não saber? Acaso quando contrataram o porteiro pediram-lhe requisitos telepáticos ou mediúnicos?!
Passam mais três ou quatro aflitivos minutos com o segurança a correr a listagem e a suceder-se nos telefonemas sempre com a mesma pergunta: «Ó doutora, desculpe incomodá-la, mas por acaso sabe o que é que a "doutora" tal faz?». A resposta tarda difícil. O homem já tem as páginas do desportivo todas baralhadas com as da listagem das extensões da portaria e vai limpando mais amiúde as gotículas de suor que se lhe formam na prega da testa. De repente ouvem-se passos a escadaria de pedra. «Vamos esperar para ver quem lá vem. Pode ser que a senhora tenha sorte e seja alguém que saiba!», sugere ele, entre o alívio e a piscadela cúmplice de quem acaba de ter uma excelente ideia para deslindar um enigma comum. Uma funcionária rente à idade da reforma desce com um braçado de fotocópias, olhando os degraus cuidadosamente, paraevitar escorregar na polidez da pedra. «Ó dona fulana de tal, veja lá se ajuda aqui esta senhora: falou com a doutora tal e tal e quer saber o que é que ela faz cá dentro. Eu já revirei isto tudo, mas não vem em lugar nenhum... Esta senhora está um bocado aborrecida e quer saber.» Sumarizo à funcionária a situação caricata por que acabei de passar e passo à conclusão que ali me trouxe a segunda vez: Não creio ser forma de receber ninguém, estranho que quem procure o Instituto nem passe da portaria e fique limitada a tratar dos seus assuntos com o segurança, mas para um organismo governamental, ainda para mais afecto ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, espanta-me ainda mais que se proceda num tamanho desrespeito com as mais elementares regras do protocolo: que as pessoas nem sequer se identifiquem ao telefone. «Sabe, é que a senhora doutra presidenta vai amanhã para Angola com o senhor presidente da República e isto aqui, hoje, está uma grande confusão. As outras doutoras todas (as directoras abaixo, sabe?! as que têm as diversas áreas) andam todas numa correria, a fazerem fotocópias à pressa e a prepararem os dossiers que ela tem que levar na viagem... A senhora teve azar: veio cá num dia mau! Isto normalmente não é assim: até costuma ser uma calmaria» Só para situar: posso compreender que existam dias mais atribulados, mas há um horário de atendimento ao público. As pessoas não só não são obrigadas a saber do volume de trabalho dos serviços, como não têm que ser prejudicadas pelas correrias internas a que ele obriga. «Eu compreendo e não estou a tentar justificar a forma como foi recebida...» – ou 'como nem sequer fui recebida', acrescentaria eu – «... Só estou a dizer isto para a senhora não ficar com tão má impressão do Instituto, percebe?!». Percebo. E até percebo mais: percebo que esta funcionária fará falta ao Instituto Camões como provavelmente não farão algumas das suas "doutoras". Só não estou certa que a instituição ou sequer a 'senhora doutora presidenta' se dêem conta disso.
Sob indicação da funcionária, o segurança liga agora para nova extensão mas o telefone toca e ninguém atende. «Não sei se terá saído, mas esta doutora é que é a responsável pelo departamento que a pode esclarecer», vai dizendo a funcionária, como quem quer simultaneamente recuperar a imagem do Instituto e o meu alento. Não seria mais simples uma secretaria, um balcão de informações, mesmo que só com uma pessoa a atender, que poupasse estas andanças e encaminhasse de imediato os visitantes para quem de direito, pergunto eu. Se eu não tivesse voltado atrás nem tido a sorte de encontrar esta senhora funcionária tinha voltado pelo mesmo caminho e perdido a viagem sem nunca perceber se o Instituto Camões era ou não de utilidade aos esclarecimentos que necessito. «Pois, mas agora é assim... Eles não gostam muito de receber e falar com as pessoas se não for preciso. Para não se estarem a incomodar em vão, percebe?!» Não, não percebo. Não percebo como é que um Instituto que é criado para fomento da língua e cultura portuguesas pode sertão avesso ao contacto e ao diálogo, como é que crê poder cumprir os seus objectivos dispensando as pessoas que o procuram e se interessam por questões que lhe estão relacionadas.
Por providencial coincidência, calhou que a demora de alguém atender do outro lado da linha me fez estar ainda no hall de entrada no momento em que a porta guarda-vento se voltou a abrir. «Ò senhor segurança, desligue! Desligue que já não é preciso. Vem aqui mesmo a chegar a doutora que andávamos à procura.», exclamou a funcionária, como se tivesse voltado a respirar novamente por conseguir responder à minha solicitação e com isso salvar igualmente a face ao Instituto. Segurança e funcionária atropelaram a expor a meias a questão. Fui finalmente convidada a subir, recebida e atendida.

À noite, confirmo o que a funcionária partilhou comigo: o presidente da República está de visita oficial a Angola nos dias 19 a 22 de Julho. Segue-se a participação, no dia 23, na VIII Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, que decorrerá em Luanda. Com ele viajam, justamente, o ministro e o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, bem como uma delegação parlamentar e representantes de vários outros organismos, como por exemplo a presidente do Instituto Camões.
Entre outras coisas, leio, aliás, no site da Presidência.

O Presidente Aníbal Cavaco Silva dirigir-se-á aos alunos e professores da Universidade Agostinho Neto, sobre a promoção e projecção internacional da língua portuguesa, sublinhando a importância que atribui a um tema que tem constituído, também, uma das prioridades da Presidência Portuguesa da CPLP.

Subitamente, dou comigo mais céptica em relação à visita, ao enquadramento e respectiva consecução dos seus objectivos. Por mais que me tente desprender do episódio particular da tarde, a verdade é que não consigo deixar de pensar no muito de estritamente básico e elementar que ainda há a fazer para que "a importância atribuída ao tema" adquira expressão concreta na prática.

Aquilo que eu sei  é que, ainda esta tarde, voltei para casa com a segurança de ter tratado do que ia tratar, não tanto por eficácia do Instituto Camões, ou disponibilidade e eficiência de quem me atendeu, mas pela sorte de ter voltado para trás a tempo de me cruzar com a funcionária que um destes dias se há-de reformar e que calhava, nesse mesmo instante, a vir descendo a escadaria do hall, equilibrando um braçado volumoso de fotocópias sobre a polidez da pedra.

Posted by por AMC on 21:59. Filed under , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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