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"Um museu para Nísia Floresta"

por Ribamar Bessa Freire *

Na quarta-feira, 28 de Março, viajei para o município de Nísia Floresta, localizado a 40 km de Natal (RN) para assistir a inauguração de um museu. Na visita à exposição, feita em companhia da precoce animadora cultural potiguar Ana Pereira, comentei a resposta dada pelo índio Cocama, Bernardo Romaina, do Alto Solimões, quando lhe indagaram as razões de não haverem jogado fora uma antiga zarabatana do século XVI.
- Pra que os Cocama guardam um objeto inútil, uma arma imprestável que nunca mais usarão e que deixaram de fabricar?
Bernardo, consciente do valor histórico do artefato, respondeu:
- Para não esquecer.
Dessa forma, a zarabatana, exemplar único musealizado no teto da maloca, passou a ser arma de uma outra guerra: a guerra da memória. É com esta guerra que está comprometido o Museu Nísia Floresta. Ele foi criado justamente para não esquecer a escritora e educadora Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nascida em Papari (RN), em outubro de 1810, e falecida em Ruão, França, em abril de 1885.
Quem é que conhece a história dessa mulher extraordinária do século XIX, que deu nome ao município onde nasceu e cujos livros foram publicados em vários países da Europa? Ela foi pioneira na luta feminista no Brasil, brigou pelos direitos das mulheres, dos negros, dos índios, de todos os humilhados, e conviveu com intelectuais europeus, como o filósofo positivista Auguste Comte, com quem manteve expressiva correspondência epistolar e a cujo enterro compareceu, acompanhando seu cortejo fúnebre. No Brasil, um país escravocrata, com um governo monárquico, ela defendia o ideal republicano e pregava a abolição da escravidão. Numa sociedade extremamente machista como era a brasileira do século XIX, ela defendia a igualdade política dos sexos. Num contexto carregado de preconceito contra os índios ela escreveu um poema de 712 versos – A lágrima de um Caeté - cuja primeira edição é de 1849, onde denuncia a violência anti-indígena, relacionando-a com a Revolução Praieira, reprimida em Pernambuco naquele ano.

O museu, em homenagem à memória de Nísia, pretende preservar, coletar e expor objetos, documentação e pesquisas vinculados a essa história. Idealizado e desenhado pelo Centro de Documentação e Comunicação Popular, concorreu ao edital do Ministério da Cultura e foi selecionado em segundo lugar em todo o Brasil.
O projeto expográfico, elaborado e executado pelo museólogo Hélio Oliveira, da Fundação Câmara Cascudo, tem como fio condutor a vida de Nísia Floresta e sua trajetória em defesa dos oprimidos. Fornece também dados sobre a história do casarão do século XIX, que sofreu reformas no ano passado para adequá-lo como espaço do museu.
Hélio de Oliveira teve uma sacação luminosa, quando concebeu um dos módulos da exposição como o útero materno, a partir de uma imagem de Gaston Bachelard. Se a casa, na visão de Bachelard, ganha um destaque sagrado como extensão do útero materno, é a partir daí que começa a gerar as memórias acumuladas, onde passado e presente se encontram – diz o texto de Hélio.
O museólogo usa ainda um dos principais ícones da cidade – Nossa Senhora do Ó, a padroeira local – para homenagear as mulheres como únicas a serem capazes de gerar outro ser. Constrói um mosaico com fotos que inclui mulheres que se destacaram no cenário brasileiro, nos diversos segmentos, desde a presidente Dilma Rousseff até Ana Rodrigues Braga, líder de uma rebelião em Mossoró, à época do Brasil Império, contra o recrutamento e o sorteio para o serviço militar. Aparecem ainda mulheres anônimas da região e, no meio delas, Nísia Floresta.
O Museu traça ainda uma linha do tempo, com uma cronologia onde é possível acompanhar a trajetória de vida e de luta da escritora, que viveu em muitos lugares ao longo da vida, tendo presenciado acontecimentos importantes como a Revolução Farroupilha e a unificação da Itália. Mostra ainda edições dos seus livros em português, francês, inglês e italiano, entre os quais Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), Conselhos à minha filha (1842), Opúsculo humanitário (1853) e A mulher (1859).
Em decorrência de uma pneumonia, Nisia Floresta morreu em Ruão, em 1885 e foi enterrada no cemitério de Bonsecours, na França. Sete décadas depois, em 1954, suas cinzas foram transladadas para o Rio Grande do Norte, depositadas inicialmente na igreja matriz, levadas depois para um túmulo no sítio Floresta, onde nasceu.
Uma de suas frases destacada na exposição diz: “Se este sexo altivo quer fazer-nos acreditar que tem sobre nós um direito natural de superioridade, por que não nos prova o privilégio, que para isso recebeu da Natureza, servindo-se de sua razão para se convencerem?” (Nísia Floresta, em Direito das mulheres e Injustiça dos Homens – 1832)



* professor da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas da Faculdade de Educação. Ministra cursos de formação de professores indígenas em diferentes regiões do Brasil.

# Site: Projecto Memória - Nísia Floresta

Cf. também:

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