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Reportagem: A catástrofe em Nova Friburgo não passou, está a ser

por Alexandra Lucas Pereira

foto: Ricardo Moraes

Estradas engolidas pelo abismo. Cataratas a caírem dos morros. Uma cidade isolada. Medo, saques, cada vez mais mortos. E uma espantosa solidariedade.
Subimos a mil metros, na única estrada ainda aberta para Nova Friburgo, com chuva e neblina. O carro segue lentamente encostado ao morro, terra e matagal por aí acima, furando o céu. E, de repente, a água começa a desabar. Já não é chuva, é aquilo que os brasileiros chamam "pancada de água". O carro pára em cima do carro da frente. O morro começa a jorrar lama, a berma transforma-se num rápido, e em dois minutos a estrada fica inundada.
Os carros imobilizam-se, de vidros fechados. A terra desfaz-se no asfalto, em torrentes. A água não pára de subir.
É claustrofóbico.
O carro da frente avança. A caravana recomeça, ainda mais lenta. E então, do lado esquerdo, a estrada desaparece. Toda a faixa em sentido contrário foi engolida pelo abismo. Abateu, de tão mole estava a terra por baixo. Resta uma cratera gigantesca. Avançamos entre ela e o morro, num medo mudo.
A sensação é que, de um momento para o outro, a paisagem nos pode esmagar.
Depois a cratera passa, a estrada volta a ter duas faixas e lá adiante aparece a rodoviária de Friburgo, como uma espécie de terra à vista, cheia de náufragos debaixo do telheiro, enquanto a chuva continua a bater.
Seguimos em frente.
Falta pouco mais de um quilómetro para o centro da cidade. Daqui a nada, com certeza estamos lá.
Mas o carro da frente volta a parar, e à frente dele há toda uma fila. Vamos lá à frente ver o que é. Homens de impermeável agitam freneticamente os braços: um rio castanho desce do morro em velocidade alucinante, cortando a estrada.
Por isso é que tanta gente estava abrigada no telheiro da rodoviária. Para a frente deixou de haver caminho.
"Isso é água dos morros, e se continuar assim vai ter mais desabamentos", grita William, um dos voluntários de impermeável.
Há milhares de voluntários por toda a parte, gente vinda do Rio de Janeiro, vendedores, como este William, jovens universitários, como o estudante Rafael, que vai a guiar ao lado da repórter, para levar mantimentos e roupa reunidos numa colecta da PUC (Pontifícia Universidade Católica).
"Nunca vi uma corrente de solidariedade assim", diz Rafael. O seu carro é um pequeno Renault Clio, mas ele não hesitou em juntá-lo ao comboio de jipes e pick ups que está a tentar chegar à região serrana, carregadinho de leite em pó, latas de ervilhas, biscoitos, sumos, água, toalhas, roupa.
O Instituto de Sangue anunciou que atingiu o limite máximo de recolha de dadores. A sociedade civil do Rio está a cuidar dos seus vivos, mas não só. Todos os que aqui se vêem de máscara cirúrgica e luvas são voluntários que andam a resgatar mortos.

Cada dia pior

Até ontem, a cidade com maior número de vítimas era Teresópolis. Hoje Nova Friburgo tomou a dianteira, e os números disparam hora a hora.
"Vai ter de esperar a chuva baixar para passar por aqui", grita William, no momento em que chega uma escavadora. "O melhor é voltar atrás e pegar a outra estrada para o centro."
Mas, quando voltamos para trás, anunciam-nos que a zona da cratera foi interditada mal passámos, porque o asfalto começou a ceder mais.
Ou seja, estamos encurralados entre uma cratera e um rio.
"Ilhados!", dizem Rafael e os voluntários dos outros dois carros que o acompanham. Um deles é Carlos Silvestre, um técnico de electricidade que mora em Niterói mas tem o pai de 80 anos no centro de Friburgo.
Estão "ilhados" eles, lá no centro, e nós, que não conseguimos sair deste pedaço de estrada onde está o telheiro da rodoviária.
Bernardo Feijó só parou de trabalhar assim, forçado pela chuva, aqui no telheiro. É engenheiro, trabalha na reparação das estradas. "A situação está-se agravando a cada dia. O excesso de chuva carregou as árvores para os bueiros, tapou-os, então a água subiu e inundou a estrada, começou a passar por cima e por baixo do asfalto, a abrir fissuras. E agora, com essa chuva, corre o risco de colapso. Só estou aqui porque quando começou esta pancada me disseram para procurar um lugar seguro."A seu lado está Caio, cara de Van Gogh num corpo de lutador, máscara cirúrgica ao pescoço. "Tenho andado a fazer remoção de cadáveres. Tinha uns 15 lá, onde fui. E ainda não chegámos em Campo de Coelho. Os moradores estão falando que tem mais de cem corpos lá. Nem em São Geraldo, em São Lourenço, em Salinas, em Conquista..."
Tudo freguesias à espera de socorro desde quarta-feira de manhã, o dia em que esta região acordou soterrada em lama.
Também parados no telheiro estão Márcio Rebouças, responsável pelo crematório de Nova Friburgo, e o seu amigo Roberto Jatobá, que mora mesmo ao pé da escola onde os corpos estão a ser identificados. "A gente está lá dando apoio, o cheiro está muito forte..." Também ele tem uma máscara cirúrgica.
"Só aqui já acharam perto de 300 corpos", diz Márcio. "Mas vai haver muito mais. Tem várias localidades isoladas, não tem como tirar as pessoas. O Hospital de São Lucas, que tem nove andares, foi evacuado. E agora deu esse pancadão de chuva. O centro está muito mal, mas à volta é pior."
Na outra ponta do telheiro, Luzia Lugão espera ansiosamente a retomada dos ônibus para abandonar a cidade. É uma mulher de meia-idade exausta. "A minha casa está em perigo e eu estou indo embora. Todo o bairro acabou, tudo, tudo. Não tem comida, não tem luz, não tem telefone. Não aguento mais de chorar, de ver criança morrendo com barro nos ouvidos e nos olhos. Não aguento mais." Mas diz isto serena, sem subir a voz, sem chorar.
Dois homens esperam sentados dentro de um carro, prontos a arrancar. "A minha irmã telefonou do centro a dizer que o rio transbordou novamente e a água já está na placa do carro."

Cidade na lama

Às três da tarde, os carros começam a passar onde há pouco jorrava um rio do morro. Ainda jorra, mas menor. Rafael segura a respiração e avança com o seu Clio. Pouco adiante, entulho e lixo no asfalto. E, ao fundo, a silhueta de um morro gigantesco, cheio de neblina.
Depois a estrada entra na cidade, passando por favelas.
Carlos, o voluntário de Niterói que, além de trazer donativos, vem ver o pai, dá boleia a uma mãe e filha, mulatas, encharcadas. A mãe chama-se Domicília, é professora de Educação Física e foi ao Rio buscar a filha. Na freguesia onde mora, "a estimativa é de uns cem mortos", diz. "Numa das casas que cederam, morreram dez crianças que faziam parte do projecto Atleta do Futuro, de que eu participo."
Mãe e filha seguem a pé, pingando.
Estamos em pleno centro e a cidade está coberta de lama, restos, lixo. Por toda a parte se ouvem ambulâncias, carros de bombeiros e da polícia. Por toda a parte há gente de impermeável e luvas, calças e botas castanhas, barrentas.
"Vem identificar alguém?", pergunta a jovem Camila, que parece uma adolescente a trabalhar há demasiadas horas, numa mesinha cheia de papéis. A repórter acaba de entrar na escola onde os corpos estão a ser identificados sem cessar.
"Os corpos chegam aqui, são limpos, fotografados, mostramos a fotografia dos cadáveres às pessoas e elas identificam os parentes", explica um técnico do Governo do Estado do Rio de Janeiro, um dos muitos enviados para a região serrana. "Até agora, passaram por aqui 248 corpos, 34 ainda não identificados. Depois saem daqui já nos caixões."
Nos degraus da escola, descansa um grupo de homens com luvas mas sem lama. Trabalham todos para agências funerárias.

O jornaleiro incansável

Em frente à escola, a Secretaria de Saúde do Governo do Rio montou um hospital de campanha. Entram velhinhos de braços enfaixados, saem batas brancas, fardas de bombeiros, capas de chuva.
"A chuva atrapalhou tudo", diz Ruben, 29 anos, um rapaz pequeno e robusto, de rosto afogueado, como se tivesse tomado algo. Mas é o frenesim de quem não pára. "Tive agora a informação de que há um bairro onde estão oito diabéticos sem insulina, e tem lá crianças e idosos", anuncia ele à repórter, e depois ao médico dos bombeiros.
Que faz Ruben, normalmente? "Sou jornaleiro. Tenho uma banca lá em Jacarepaguá." Subúrbio da Zona Oeste do Rio de Janeiro. E veio só para ajudar? "Com certeza. Deixei a minha esposa e os meus quatro filhos para vir para aqui. Eu e o meu irmão. Estamos ali a dormir na escola."
A escola onde agora vão chegando os mortos.
"É que eu nasci aqui. E quando comecei a ver as imagens, o meu coração mandou eu vir. Tenho amigos aqui, tenho parentes." Depois de saber deles, continuou.
Puxa um coração de metal que traz preso à bolsa, na cintura. "Estive na missa do padre Marcelo e rezei por você", diz o coração. Quem é o padre Marcelo? "É da Igreja Católica, um padre maravilhoso, o que mais arrasta fiéis." Já o estão a chamar para acudir a algo. Ruben vai, mas antes diz, apontando para cima. "Às vezes o homem tem de dar um passo atrás para poder dar dez para a frente."

Risco epidémico

Números oficiais a esta hora: 267 mortos em Friburgo, 591 em toda a região serrana. Ou seja, é em Friburgo que o número de mortos mais tem crescido.
"E ainda há muita gente isolada", confirma Marcelo Canetti, o médico-coronel dos bombeiros. "Não estamos a ter acesso a vários lugares, e nem há comunicação." Redes fixas e móveis ficaram atingidas em parte do município.
Este hospital de campanha, montado ontem, está a trabalhar em parceria com o hospital de campanha montado pela Marinha na prefeitura. "Temos capacidade cirúrgica aqui. Acabamos de receber um senhor com uma fractura do fêmur."
O maior risco agora, do ponto de vista médico, são as epidemias. "Gastroenterite, por causa da água. Hepatite A e leptospirose, uma doença transmitida por urina de rato, quando a água dos esgotos transborda."
Entretanto, Rafael, Carlos e os outros voluntários da PUC foram para o Colégio Nossa Senhora das Dores entregar sacos de donativos. A filha de Carlos e o namorado fazem parte de uma sub-rede social conhecida como "o pessoal da Lei Seca". A Lei Seca são as constantes barreiras de controlo de álcool no Rio. E há toda uma rede de cariocas que usam o twitter para filtrar as autoridades. Centenas de dicas em fluxo constante sobre onde o controlo está ou estará e o que fazer para lhe escapar, para além de escapar ao trânsito. Foi através desta rede que muito rapidamente se juntaram dezenas de carros voluntários para, num sábado, dia de folga do pessoal, ir levar ajuda até à região serrana, correndo riscos. Amigo puxa amigo, num ápice esta comunidade ficou ligada à iniciativa da PUC - que vai na sua quarta campanha, passando pelo Haiti -, e esta manhã havia vários pontos de saída do Rio de Janeiro em direcção a vários locais, todos carregados de mantimentos e roupa.
Sacos e caixas continuam a chegar em catadupa ao Colégio, agora que a chuva amainou.
Mas basta recuar uma rua, na direcção do morro, para ver o cenário apocalíptico que aqui matou muita gente entre terça e quarta. A encosta parece uma ferida fresca. A terra caiu em cima de carros, casas, e de um carro de bombeiros, matando quatro homens. O carro continua lá, estraçalhado, no meio da lama, com o morro por trás, impávido, sob uma coroa de neblina.
Na esquina, moradores de Friburgo pedem aos bombeiros galochas e capas para ir ajudar. Por exemplo, o voluntário Rodrigo, nadador-salvador de profissão: "Que número é o seu, 43?", pergunta-lhe um bombeiro. Não exactamente, mas pronto.Quando Rafael pergunta o caminho de regresso ao Rio, um polícia anuncia que a estrada da cratera caiu mais. "Não tem passagem." Rafael acaba por descobrir depois que a Defesa Civil está a deixar passar só os carros que trouxeram donativos e parte para o Rio.
Os padres da Paróquia de São João Baptista cedem um computador à repórter. Anoitece em Nova Friburgo. Um paroquiano vem a correr avisar que é melhor fechar a catedral. "Começaram a fazer saques."

Posted by por AMC on 13:24. Filed under , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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