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"4 de Dezembro de 1980, o comício de encerramento que acabou antes de ter começado"

por Francisco Sena Santos

Perto das nove da noite, a música calou-se e os holofotes foram desligados. Nas televisões Raul Durão anunciou uma "notícia muito triste". Francisco Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e mais seis pessoas não tinham sobrevivido à queda do Cessna 421 onde

O dia 4 de Dezembro de 1980 calhou numa quinta-feira. Foi, em Lisboa, um dia meteorológico cinzento e frio, mas a temperatura política do país estava em brasa. Era o penúltimo dia de áspera campanha para a eleição presidencial, no domingo seguinte, 7 de Dezembro.
Esta eleição tinha-se tornado batalha crucial no confronto entre esquerda e direita, pela liderança de Portugal, com o país bipolarizado e inflamado. Esta eleição presidencial aparecia como o choque final entre duas formas antagónicas de entender o rumo político de Portugal. A protagonizá-las, Ramalho Eanes, presidente da República e Sá Carneiro, primeiro-ministro, representado neste combate pelo candidato Soares Carneiro.  
Dois meses antes, em 5 de Outubro, as eleições legislativas tinham dado maioria absoluta (44,9% dos votos) à AD, a Aliança Democrática idealizada por Francisco Sá Carneiro com Diogo Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles.
Esta frente PPD, CDS e PPM já um ano antes, em 2 de Dezembro de 1979, tinha proporcionado à direita a primeira vitória eleitoral após o 25 de Abril de 1974. Mas fora uma vitória limitada, porque a esquerda PS e PCP continuava a ter maioria no parlamento. Daí que Sá Carneiro tenha forçado, neste 1980, a aposta no tudo ou nada: propôs-se dar ao centro-direita uma maioria (absoluta), um governo e um presidente. Usando como rampa de lançamento as eleições legislativas e as presidenciais, ambas marcadas para o último trimestre de 1980. Ameaçou deixar a liderança se não conseguisse o pleno.
Nas legislativas, em 5 de Outubro de 1980, Sá Carneiro entrou a ganhar,  conseguiu os primeiros dois dos três objectivos: maioria absoluta no parlamento (126 dos 250 deputados) e, efeito desse triunfo, garantiu apoio firme ao governo da AD.
A outra ambição, colocada como vital para o triunfo da ideia da AD, a eleição de um Presidente da República em sintonia com a Aliança Democrática, iria decidir-se em 7 de Dezembro deste mesmo ano 1980, na eleição presidencial. A fasquia estava muito alta para Sá Carneiro e aliados, porque a hostilidade que a direita desenvolveu perante o presidente Eanes levou a que muita esquerda se colocasse ao lado daquele presidente que antes tanto rejeitara. Eanes tornou-se candidato circunstancial dos socialistas (embora Mário Soares tenha recorrido à suspensão, durante a campanha, de funções como líder socialista, por não concordar com o apoio do PS a Eanes) e forçado dos comunistas. Para barrar o assalto da direita a todo o topo do poder.
Sá Carneiro, aglutinador das diversas tendências da direita portuguesa, embora em conflito com o poder militar instalado em Portugal desde o 25 de Abril de 1974, escolheu um outro general para desafiar Ramalho Eanes nestas eleições presidenciais de 7 de Dezembro de 1980. A aposta da AD foi António Soares Carneiro, um taciturno quase desconhecido militar que depressa veio a revelar-se pouco dotado para as relações públicas.
Soares Carneiro, a quem foi colada a imagem de homem do passado, até pelo envolvimento na guerra colonial, nunca conseguiu descolar nas sondagens. Mas a direita confiava que o facto de Sá Carneiro estar a pôr nesta eleição todo o seu carisma e férrea vontade de vencer, pudesse abrir a possibilidade de triunfo que consolidasse a vitória da AD nas legislativas de 5 de Outubro.
Chegamos então à noite fria de 4 de Dezembro de 1980. Últimas horas de campanha para a crucial eleição.
Eanes marcara comício para o Rossio, em Lisboa. Soares Carneiro para o Palácio de Cristal, no Porto. As últimas sondagens apontavam claramente para a reeleição de Eanes, mas sem excluir a possibilidade de reviravolta. Daí que estivesse forte a mobilização para os comícios de encerramento de campanha.
Em Lisboa, às oito da noite, o Rossio já recebia alguns milhares de pessoas para o comício de Eanes, que iria começar às nove e meia. O palco para os oradores estava montado junto às colunas na fachada do teatro nacional de D. Maria II. Os hinos e palavras de ordem da campanha ecoavam, pelos alto-falantes, da praça da Figueira aos Restauradores.
Subitamente, perto das nove da noite, a música calou-se e os holofotes foram desligados, ao mesmo tempo que entre as pessoas presentes no Rossio se instalou uma sensação difícil de exprimir, alimentada por rumores. A voz baixa começou a passar de pessoa a pessoa que tinha caído um avião em Camarate. Que nesse avião seguiam figuras de topo. Quem? Havia quem dissesse que o candidato Soares Carneiro. Quem, no Rossio, tinha transístor, encostava o rádio ao ouvido à espera de notícias. Estas faziam-se esperar, mas a RDP1 já estava a passar música clássica, escolha tão rara que foi interpretada como sinal de luto.
Naquele tempo, Dezembro de 1980, não havia telemóveis, nem internet nem rádios ou televisões de notícias para apressar o acesso à informação.
Junto ao Rossio, num café da rua 1º de Dezembro, havia uma televisão ligada. A programação de rotina foi bruscamente interrompida para um noticiário de última hora. Apareceu Raul Durão, que já tinha fechado o Telejornal, a anunciar “uma notícia muito triste”. Ao mesmo tempo, Adelino Gomes e Jaime Marques de Almeida rompiam em antena a programação da RDP-Rádio Comercial, a partir dos estúdios na rua Sampaio e Pina, para confirmar que a bordo da avioneta Cessna 421 que se despenhara instantes após descolar de Lisboa, iam o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, o ministro da defesa Adelino Amaro da Costa, e outras seis pessoas. Ninguém sobrevivera ao desastre.
No Rossio, uma voz embargada anunciou a quem esperava pelo comício de Eanes o que estava a acontecer. O comício de encerramento, que se anunciava grandioso, acabou, é claro, antes de ter começado. O choque da notícia instalou um ambiente estranho na grande praça D. Pedro IV. Entre a multidão, até os mais fervorosos adversários de Sá Carneiro acusavam o abrupto vazio carregado de incertezas. 
A campanha eleitoral parou imediatamente, com o país de luto. A manchete do Diário de Lisboa no dia seguinte, sexta-feira, 5 de Dezembro, confirmava que a morte de Sá Carneiro não alterava o calendário eleitoral. No sábado, o cortejo fúnebre, ao longo de cinco horas, foi comentado no diário espanhol El País como uma “demonstração política contra Eanes”.
O voto, no domingo, 7 de Dezembro, ganhou o sentido de referendo popular ao testamento político de Sá Carneiro. Eanes foi reeleito Presidente da República com 56% dos votos. Soares Carneiro ficou pelos 40% e saiu da cena política. Balsemão tornou-se primeiro-ministro de uma AD que entrou em desagregação com o vazio pelo desaparecimento do líder que se fez insubstituível, Mário Soares retomou a liderança do PS e viria a vencer as eleições seguintes. Sá Carneiro ficou como mito.


# ouça aqui a reportagem

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