O 'Caso Queiroz'
Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol e Carlos Queiroz, Seleccionador Nacional
O 'Caso Queiroz' é emblemático deste Portugal sacana que aproveita as ausências para ir minando previamente o terreno a quem o há-de pisar à chegada, à laia de comissão de honra em celebração de boas vindas. É um exemplo do Portugal traiçoeiro e cínico que sorri pela frente, estende apertos de mão, dá pancadinhas nas costas, tece elogios e declara votos de confiança, mas vai distribuindo golpes certeiros à sucapa e espetando a faca pelas costas abaixo daqueles que convida, em quem diz confiar e ao lado dos quais se apresenta sempre como companheiro leal, membro solidário de equipa, indefectível apoiante e colaborador. É um exemplo deste Portugal cobarde e hipócrita que não sabe marrar de frente e pega de cernelha quando menos se espera, sem razão aparente que o justifique, sob a falsa capa dos pretextos que vai arrebanhando pelo caminho, que cala no momento certo e prefere ir guardando na surra para sacar da manga quando der jeito e for mais conveniente.
O que sucede com Carlos Queiroz não difere da prática que faz moda na maioria das empresas quando se trata de tirar uma pedra incómoda do caminho. Despedir é uma chatice, é um facto. Seja como for é sempre uma chatice incomparavelmente mais chata para quem é despedido do que para quem despede. Com a agravante de que quem despede tem a faca e o queijo na mão: o despedimento é sempre possível. Com ou sem justa causa. Com ou sem acordo. É por essa razão que existem as indemnizações e, caso o sentimento de injustiça prevaleça, tribunais para decidirem da correcção ou não da compensação dada a quem não dispunha nem da faca nem do queijo.
Acontece que para isso é necessário que quem está em posição possua os requisitos mínimos e imprescindíveis aos que se pretendem ocupá-la. Como a frontalidade, para não ir mais longe. E a responsabilidade, para não sair do mesmo eixo.
Mas como nunca se sabe o dia de amanhã, nos tempos que correm o que prolifera são os adeptos da táctica que recomenda 'agradar a gregos e troianos'. Sobejam os que não querem sujar as mãos, os que não se querem comprometer, os que tremem diante da ideia de tomar algum partido, os querem manter-se nas boas graças de toda a gente, mesmo sendo cúmplices activos ou omissos das decisões tomadas. Não há, aliás, nada mais patético do que despedir como se se lamentasse estar a despedir. Porque não, não se lamenta. Prefere-se essa solução a outras em cima da mesa ou, mais que não seja, às consequências de não despedir. E não, também não há nada mais desonesto do que despedir como se se estivesse a fazer um favor ou um bem a quem se despede. Pior: como se se estivesse francamente preocupado com o destino que se segue a quem é despedido. Porque aquilo que se está a fazer quando se despede alguém é, em verdade, a dizer-lhe que se escolhe cessar qualquer responsabilidade que a partir desse momento lhe diga respeito. E não importam as razões. Até podem ser as mais meritórias e incontornáveis do mundo. Sucede porém que todas elas, sejam quais forem, dizem respeito a quem despede e não importam rigorosamente nada aos interesses de quem é despedido. É por isso que também não há nada mais perverso nem pacóvio do que aquela postura do "amigos na mesma", "quero que saiba que pode continuar a contar comigo para o que precisar", "não é nada de pessoal", "não duvide nem por um momento o quanto isto me custa a mim". Acho mesmo que devia ser regra de ouro despedir por justa causa qualquer chefia ou hierarquia que ousasse despedir nestes termos. São competências e funções que se atribuem pressupondo o óbvio: a assumpção plena dos actos e não a desculpabilização ou arrependimento velado dos mesmos. Se esse tipo de sentimento subsiste é porque não existe convicção plena de se estar a agir da forma correcta e, a ser assim, mostra apenas que quem tomou a decisão o fez apesar de saber que não procedeu de forma adequada, logo: não serve para o lugar que ocupa. O que falta em integridade nos titulares dos cargos com algum poder sobra em moluscos. Eis porque tão viscosamente se conseguem ir arrastando e mantendo em cima do muro sem nunca terem que pender para um lado ou para o outro.
Aquilo que havia a averiguar era simples: Carlos Queiroz obstruiu ou não a realização da acção de controlo anti dopping? Se o fez deveria ser punido por isso. Se injuriou os agentes designados para a ela procederem deveria submeter-se à reparação legal ditada para essa injúria. Ao invés de se apurar esse facto adensou-se o embróglio e, sem nada concluir ou esclarecer, cria-se a ideia de que a situação tornou o seu despedimento inevitável. Pior: sem nada concluir ou apurar, infere-se que há motivo para que esse despedimento seja por justa causa: leia-se, portanto, sem qualquer direito ao pagamento da indemnização estipulada. Se é vontade de quem de direito despedir o seleccionador nacional que isso lhe seja comunicado, que Carlos Queiroz seja despedido e que quem despede cumpra as obrigações contratuais que acordou no momento da contratação. Se o valor é demasiado elevado para os cofres de quem despede, lamentamos temos pena: essa ponderação deveria ter sido feita à data em que se assinou tal compromisso. Agora é uma questão de acautelar a verba para poder agir no sentido que pretende.Faria bem melhor quem anseia pelo despedimento de ocupar o cérebro e os dias a tratar de encontrar formas de a conseguir do que a engendrar modos de se lhe furtar.
Perante o 'Caso Queiroz', dou comigo para aqui a pensar: assim como assim, quase que mais vale fazer como o outro, que despediu todos os trabalhadores da fábrica que lhe pertencia por SMS. É certo que a mensagem não vinha assinada, mas pelo menos ninguém teve dúvidas acerca do seu conteúdo. Dizia 'simplesmente': «A partir de segunda-feira, a empresa vai fechar. Vão receber a carta para o desemprego».
