Sugestão de leitura: 'O bosque da noite' de Djuna Barnes
A literatura está cheia de personagens que fazem a lenda da cena literária. Lou Andreas-Salomé, Karen Blixen, Harold Acton, Paul Bowles, James Merrill e Sam Shepard, para citar meia dúzia de nomes fortes, são exemplos (muito diferentes entre si) dessa constelação fulgurante. A crítica alinha-os na categoria de autores de culto.
Por maioria de razão entra aqui Djuna Barnes (1892-1982), escritora e poeta contra todas as probabilidades. Nascida e criada no seio de uma família disfuncional, teve o privilégio de ver um dos seus primeiros livros prefaciado por T. S. Eliot: «A prosa de Miss Barnes tem o ritmo da prosa que é próprio do estilo da prosa e um modelo musical que não é o da poesia [o qual] eleva à mais alta intensidade a matéria que se comunica.» Eliot descreve O Bosque da Noite (1936), primeiro dos quatro romances de temática homossexual que marcaram a era pré-Stonewall. Os outros são Reflexos nuns Olhos de Oiro (1941), de Carson McCullers; A Cidade e o Pilar (1948), de Gore Vidal; e Outras Vozes, Outros Quartos (1948), de Truman Capote. Sobre todos, o livro de Djuna tem a vantagem de ter antecipado em trinta anos o olhar camp.
As origens suburbanas e uma adolescência pouco convencional não impediram Djuna de atravessar o Atlântico, fixando-se em Paris, onde foi aceite no círculo ultra-elitista de Natalie Barney. Sem grande esforço, a rapariguinha desamparada de Bridgeport passou a integrar a genealogia ilustre dos habitués do n.º 20 da Rue Jacob: Rainer Maria Rilke, Marina Tsvetáeva, André Gide, Olga Rudge, Ezra Pound, Peggy Guggenheim, Scott Fitzgerald, Sylvia Beach, William Carlos Williams, Gertrude Stein, James Joyce, Somerset Maugham e outros expatriados. Djuna chegara envolta num halo de escândalo: The Book of Repulsive Women (1915), a estreia literária, que mais tarde renegará, fizera dela o centro de uma cause célèbre. A época fica marcada pela ligação amorosa que manteve com a escultora Thelma Wood. Ciente da condição de outsider, publicará em 1928 o sulfuroso Ladies Almanack, violenta catilinária contra o lesbianismo-chique. Natalie Barney e todas as suas amantes são personagens do livro.
O Bosque da Noite ficou concluído em 1932, quando Djuna vivia em Londres. É uma reflexão amarga dos anos parisienses (1920-31), bem como dos equívocos, possibilidades e limites da itinerância sexual. Djuna, que teve amantes de ambos os sexos, sabe do que fala. O tom elíptico não diminui a pulsão trágica (Eliot vai ao extremo de citar a tradição isabelina), nem disfarça a relação conflituosa que manteve com Thelma Wood: «No coração de Nora repousava o fóssil de Robin, entalhe da sua identidade, e à sua volta, para que se conservasse, corria o sangue de Nora.» Fica claro que Robin Vote é o alter-ego de Thelma: «Procurei Robin em Marselha, em Tânger, em Nápoles, procurei-a para a compreender, para acabar com o meu terror. Disse a mim própria: farei o que ela fez, hei-de amar o que ela amou e então voltarei a encontrá-la.»
O desprezo de Djuna pela burguesia com veleidades aristocratizantes é dado logo a abrir, no retrato de Felix, que a si mesmo atribuía o título de barão de Volkbein: «Quando falava de um titular, fazia uma pausa antes e depois de lhe pronunciar o nome. [...] Sentia que o grande passado poderia talvez ser parcialmente refeito se se humilhasse o suficiente, sucumbisse e prestasse homenagem.» Mas o epítome do sarcasmo fica reservado a Jenny Petherbridge, quatro vezes viúva e completamente destituída de harmonia: «Só separada do resto do corpo é que uma qualquer parte dela se poderia considerar certa.»
Tensa como um arco, a escrita extremamente elaborada de Djuna denota sentido de equilíbrio e acidez bem calibrada. O mais próximo que encontramos da retórica não tem uma palavra a mais: «o amante tem de ir contra a natureza para encontrar o amor.» Não admira que Susan Sontag tenha dito que era assim que queria escrever. Não é pequeno mérito que tudo isso seja feito sem beliscar as regras (e os matizes) do simbolismo-decandentista.
'A decadência do coração', in Ípsilon, edição de 16-7-2010, pp. 44-45. (crítica literaria: quatro estrelas e meia).
via Eduardo Pitta
