«É demasiado bom para ser de todos nós»
por Daniel Oliveira:
O que não cresce morre. É esta a máxima do capitalismo. Por isso procura sempre novos mercados. E se isto é verdade à escala global, também o é no mercado interno.
Durante décadas a burguesia nacional viveu da obra pública – a necessária e a dispensável – paga com dinheiros europeus. Mesmo o consumo foi alimentado, não por uma valorização salarial – as nossas empresas não acrescentam valor ao que produzem e por isso apostam no trabalho intensivo, desqualificado e mal pago -, mas pelo endividamento das famílias. E viveu da especulação imobiliária, que cresceu às custas da fragilidade do mercado de arrendamento, do juro baixo e da bonificação do crédito à compra de casa. E alimentou-se da privatização de empresas já consolidadas, muitas delas em regime de monopólio natural. Ou seja, a nossa burguesia não criou nada, não inovou nada, não arriscou nada.
Só que, com a pressão europeia para conter a despesa pública, todas as portas de saída estão agora fechadas. Não vale a pena ter ilusões quanto á nossa capacidade de exportação. Graças à contenção salarial na Alemanha, que julga que é possível manter um mercado europeu aberto e saudável apenas exportando; à falta de competitividade da nossa produção sem valor acrescentado; e a uma moeda forte não temos grande espaço de manobra no comércio externo. Talvez com excepção do mercado angolano e brasileiro.
Resta então, à nossa elite económica, a receita do costume: rapar o fundo do tacho. Ou seja, integrar no mercado os bens e serviços públicos, tendo aí uma nova oportunidade de negócio sem risco. Já se percebeu que enquanto o Estado oferecer gratuitamente saúde e educação (bens com procura pouco elástica e por isso especialmente interessantes como negócio) os nossos grupos económicos, pouco familiarizados com a qualidade a preços aceitáveis, não se safam.
É neste contexto que devemos ver o programa que o PSD prepara para a saúde e educação e que fica claro na sua proposta de revisão constitucional.
Havia duas possibilidades: o cheque ensino e o cheque saúde ou o fim da educação e saúde gratuitas e universais. São duas formas de chegar ao mesmo. No primeiro caso, o Estado transfere para os privados os seus recursos financeiros. No segundo, o Estado torna pouco vantajosos para os cidadãos com alguns recursos os bens que oferece e, no fim, transforma os cidadãos em clientes e oferece-os ao privado. A primeira solução era mais agradável para o negócio, mas não há dinheiro público para isso. O PSD vai optar pela segunda. Ou seja, deixa para o Estado os miseráveis, passa para o privado o resto da população.
Três problemas desta solução:
1. Se a classe média abandonar os serviços públicos eles saem mais caros por utente (é uma questão de economia de escala – metade dos alunos no ensino público não corresponderá a metade da despesa).
2- Se a classe média abandona os serviços públicos eles perdem qualidade. Está estudado: com menores capital social e cultural, as classes baixas têm menor poder reivindicativo e, isoladas, não beneficiam da qualificação que a presença da classe média oferece aos serviços.
3. Pagando pelos serviços do Estado, quem paga mais impostos fará pressão para pagar menos. O caminho está traçado: Campos e Cunha e vários economistas já propõem a taxa fiscal plana. Ou seja, preparam o País para o Estado assistencialista em vez do Estado Social redistributivo.
Juntem-se as três coisas: menos qualidade, mais caro por utente, menos recursos fiscais para alimentar os serviços. Ainda menos qualidade. Ou seja, no final teremos serviços públicos miseráveis.
Não preciso de fazer qualquer futurologia. O que propõem para a saúde, por exemplo, já foi experimentado nos Estados Unidos. O Estado garantia serviços médicos apenas aos mais pobres. E em Portugal, é bom recordar, os mais pobres são mesmo muito pobres. Os indicadores de saúde de uma das maiores potências económicas do Mundo falam por si: cada americano gasta 7290 dólares em saúde por ano e cada português gasta 2150. No entanto, a esperança média de vida em Portugal é superior à dos EUA e os Estados Unidos estão vários lugares acima no ranking da mortalidade infantil. De tal forma que os EUA se viram obrigados a recuar nesta matéria. Na educação passa-se o mesmo: a escola pública americana é, em geral, um subproduto. Os mais pobres só se safam se forem muito bons e conseguirem bolsas. Os restantes estão condenados à partida.
A política de emagrecimento do Estado tem um sentido: oferecer os serviços sociais às empresas para que estas ultrapassem a sua crise de crescimento. E, com isso, sacrificar o bem comum. Próximo objectivo: a privatização da segurança social para transferir estes apetitosos recursos para fundos de pensões. Aqueles que hoje são o motor da finança em quase todo o Mundo.
O capitalismo financeiro não vive da produção. Vive, por agora, da privatização dos recursos públicos. Quando eles acabarem logo se verá para onde se vai. No caminho, deixará atrás de si um Estado Social em ruínas.
