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«O arco-íris ecológico»

por Lúcio Flávio Pinto

As empresas de mineração atuam na Amazônia há pouco mais de meio século. A segunda maior siderúrgica do mundo na época, a americana Bethlehem Steel, foi quem deu o pontapé inicial, em 1955. Junto com a Icomi, uma parceira nacional de ocasião, explorou e exauriu as ricas jazidas de manganês de Serra do Navio. O Amapá, que era então território federal, virou Estado, ficou sem sua principal riqueza (no lugar dela, como de regra na mineração, restou um buraco) e pouco enriqueceu. Tão pobre que, não tendo mais condições de se reeleger senador por sua terra natal, o Maranhão, o ex-presidente da república José Sarney mudou seu domicílio eleitoral para o Amapá. Lá, era mais fácil “garimpar” votos.
Pelo caso do manganês amapaense e por muitos outros, no Brasil e em outros lugares espalhados pelo mundo, o símbolo maior – e mais gravoso – da mineração resultou da combinação do buraco aberto pela lavra e o apito do trem, que leva a riqueza nativa para além-mar. É o que fica na terra minerada: a saudade e a melancolia por um progresso que, quando chega, é efêmero e só tem efeito localizado, além de fugaz, como perfume barato.
Assim, mineração assumiu o papel de vilão nesta história de 50 anos, como o mais simbólico dos “grandes projetos”. Eles formaram enclaves de riqueza cercados de pobreza por todos os lados. Mesmo essas ilhas de prosperidade, em torno da mina, da ferrovia ou do porto, geram mais problemas do que soluções, mais desigualdades do que oportunidades.
Mas isso era no passado, garantiu o presidente do Sindicato das Indústrias Minerais do Estado do Pará, Eugenio Victorasso, ao apresentar ao público, no mês passado, os números do desempenho da economia mineral paraense, a segunda maior do país, abaixo apenas de Minas Gerais. As empresas abandonaram a miragem do isolacionismo, tomaram conhecimento do mundão atrás de suas porteiras e estão conscientes de sua responsabilidade social e ambiental. Querem partilhar ao máximo os resultados da sua atividade e prevenir, até o limite do possível, os efeitos negativos da sua intervenção sobre a natureza. Agora praticam o desenvolvimento sustentável.
Com isso, Amazônia, se não está completamente salva, está mais bem cuidada do que antes, menos exposta aos maus tratos. Tem uma oportunidade de escapar ao destino dos que têm suas riquezas naturais exploradas. Graças ao exercício da plena cidadania empresarial.
É o que garante a maior das mineradoras, a antiga Companhia Vale do Rio Doce. “Pioneira de atuação global, a Vale tem o compromisso de transformar recursos minerais em riqueza e desenvolvimento sustentável. Esse esforço contínuo permeia todas as nossas ações”, proclama a mineradora no seu site. Assegura ainda que sua presença em determinada área “começa antes da implantação dos projetos e continua depois do fim de nossas atividades”.
Esse novo tipo de desenvolvimento “constitui uma das melhores oportunidades para que as comunidades possam atingir seu pleno potencial de desenvolvimento socioeconômico. E que é possível fazê-lo com responsabilidade ambiental”, conforme o mandamento que a empresa diz seguir. Aparentemente, diz e faz. No ano passado, a Vale investiu o equivalente a US$ 781 milhões em “responsabilidade social corporativa”, com destaque para os gastos em “proteção e conservação do meio ambiente”, que consumiram US$ 580 milhões, enquanto aos “projetos sociais” foram destinados US$ 201 milhões.
Isto porque 2009 foi um ano de queda no faturamento e no lucro, em função da crise econômica internacional. Mas para este ano as rubricas estarão mais abonadas (somando um bilhão de dólares), sendo ainda maior a diferença entre o investimento ecológico (US$ 829 milhões) e o social (US$ 150 milhões).
De fato, em torno da província mineral de Carajás resiste o último quinhão de floresta nativa de toda região, mantida a duras penas contra o avanço aniquilador das frentes de desmatamento. Mas, quando não conseguiu comprar o solo superficial sob o qual se acha a maior extensão do melhor minério de ferro do planeta (até então as mineradoras só queriam saber do subsolo), a Vale recorreu às unidades de conservação como uma forma de auto-proteção contra garimpeiros, posseiros, fazendeiros, madeireiros e outros personagens. Todos querendo avançar sobre os limites da sua rica possessão.
As reservas ecológicas foram criadas pela Vale e incorporadas, depois, pelo governo federal, que lhes deu o carimbo oficial. Mas é a empresa quem controla efetivamente essas áreas. Daí, em boa parte, sua prioridade ambientalista. O resultado, de qualquer forma, é bom. O discurso é que não é sincero.
O problema está em que os “grandes projetos” têm dado mais atenção ao fator ecológico do que ao social, não tanto por uma vocação naturalista, mas em função do maior rendimento mercadológico, de marketing. Quando se defende a natureza se consegue mais destaque, ainda quando esse destaque não se traduza em atenção pela opinião pública . É fácil engolir gato por lebre quando o bicho é embalado com o papel dourado do ecológico.
Quanto às comunidades humanas, a história é um tanto – ou bastante – diferente. Uma empresa coligada da Vale, a Mineração Rio do Norte, uma das maiores produtoras de bauxita do mundo, em 1999 decidiu reduzir em 30% o seu capital social (que, hoje, é de quase R$ 500 milhões), porque estava com “excesso de capital”.
A Receita Federal considerou ilegal a medida porque parte do capital da empresa resultara de dinheiro público, através da colaboração financeira da Sudam ou de outras formas de renúncia fiscal da União. Logo, não podia voltar aos bolsos dos acionistas (cinco dos quais são multinacionais do alumínio) sem uma verificação do fisco.
Em 2003 a MRN recebeu a maior multa já aplicada a uma empresa privada no Brasil. Para poder recorrer da autuação, teve que depositar em juízo o valor da multa, R$ 316 milhões. A contenda em juízo prosseguiu até o ano passado, quando a mineradora achou melhor deixar de lado seu recurso e fazer um acordo com o governo. Com o desconto oferecido, a multa – cujo valor atualizado se aproximava de R$ 600 milhões – foi reduzida para R$ 283 milhões e quitada. A Rio do Norte reaverá a diferença, que estava sob depósito judicial, e a utilizará neste ano para melhorar suas contas, que não foram boas em 2009 (o lucro caiu de R$ 220 milhões para R$ 46 milhões).
A moral que fica desse contencioso foi deixada de lado. Como é que uma empresa do porte da MRN reduz em quase um terço seu capital, alegando que ele é excessivo, sem levar em conta a pobreza ao redor do seu empreendimento, no extremo oeste do Pará, quase na divisa com o Estado do Amazonas?
Na sede do município de Oriximiná chegou a haver uma epidemia de gastroenterite nos anos 90, com 12 mortes. A causa do surto – de uma doença que os países civilizados desconhecem há muito tempo – foi a má qualidade da água consumida pelos 50 mil habitantes da cidade, dez vezes mais populosa do que a sede da mineração, 80 quilômetros rio acima, onde a água tratada pode ser tomada sem susto diretamente da torneira.
Ao invés de voltar ao bolso dos acionistas, o dinheiro podia ter servido para a coligada da Vale cumprir o mandamento da empresa mater: contribuir para que a comunidade local atinja o “pleno potencial de desenvolvimento socioeconômico”. Na Amazônia, esta possibilidade ainda é figura de retórica.

Posted by por AMC on 14:58. Filed under , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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