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Mulungu, que chamam por outro nome

por Rafael Galvão


Não sei se isso acontece com você, mas de vez em quando eu esqueço os nomes de coisas simples.
Dia desses esqueci o nome de uma árvore. Eu sabia que em algum momento soube o nome da dita, lembrava que era um nome estrangeiro, acho que francês. E a ignorância do nome outrora conhecido passou a me incomodar e exasperar.
Me vinham dois nomes à cabeça. O primeiro era buganvília. Mas eu sabia que não era, sabia que buganvília era outra coisa, era uma plantinha vagabundinha dessas miudinhas, uma primavera. A árvore de que eu falava não, era uma árvore de tronco quase liso, frondosa, folhas esquisitinhas, flores vermelhas, que dava uns frutos que pareciam umas espadas largas com umas favas redondas, parecidas com moedas — quando essa árvore floria era uma beleza, e eu costumava ver tantas delas antigamente.
O outro nome que me vinha à memória era mulungu. Na verdade era uma árvore até que bem parecida, mas não era ela. Mas lembrei que durante muito tempo achei que aquele pequeno enigma desimportante era um mulungu, porque Monteiro Lobato falava dessas árvores em algum dos seus livros — os mulungus que floriam no sítio, algo assim.
Mas alguém tinha me corrigido com o tal nome gringo, exatamente esse nome que eu tinha conseguido esquecer.
(Não podiam ter me deixado na minha ignorância, chamando a árvore de mulungu? Se eu achasse que era um mulungu não tinha esquecido o seu nome. E que mal faria eu achar que a tal árvore era um mulungu, me diga? Isso ia mudar a vida de alguém? Não ia.)
Durante muitas semanas tentei descobrir que árvore era aquela. Não consegui. Aumentei minha cultura inútil, no entanto; aquelas folhas esquisitinhas, na minha busca infrutífera, descobri que eram bipinadas, com vários pares de folíolos. Só não descobri o diabo do nome da árvore que eu procurava.
Lembrei também que antigamente eu via mais dessas árvores pelas cidades, mas elas parecem cada vez mais raras. Hoje sei que minha impressão estava correta: não é só um caso de sair de moda, é uma necessidade objetiva, porque as raízes são e superficiais (o que faz delas árvores mais bonitas, por sinal), invasivas e pouco adequadas à infraestrutura urbana.
Muitos anos atrás, quando moramos em Itapuã, cada um de nós, crianças, ganhou uma das árvores do quintal. Eu tomei posse de um cajueiro que nunca deu caju, ao menos que eu lembre, e minha irmã ganhou uma dessas árvores.
Necessidade besta, essa de saber o nome das coisas. Mas sem isso eu não poderia reconstruir meu passado, e então vem a consciência aguda da importância de um nome; por que você acha que não se podia falar o nome de Deus? O Velho sabia a importância dos nomes próprios. Se algo não tem um nome todo seu, essa coisa não existe. Se ela não existe, meu passado também não — e isso coloca em risco, pelo menos de um ponto de vista bem metafísico, a minha própria existência.
Por isso saí perguntando a quem podia: que árvore é aquela? E ninguém sabia. Curioso: quando o homem vai deixando de ser nômade ele desaprende o nome de muitas das plantas que conhecia. Mas agora era demais, não é possível que sejamos tão urbanos ao ponto de esquecer o nome de uma árvore comum. Isso não pode ser admitido, em nenhuma hipótese. Porque, se se admitir uma coisa dessas, se isso deixar de incomodar, daqui a pouco a gente esquece o nome das coisas mais comuns. “Qual é mesmo o nome desse negócio preto aqui embaixo, Zé?” “Asfalto, Rafael-seu-idiota”.
Perguntei a todo mundo. E descobri que a ignorância acerca do nome de uma árvore comum independe de classe social ou de nível cultural: ninguém sabia. Alguns amigos, mais sofisticados, soltaram umas hipóteses: aquilo era um ipê. Mas ipê é árvore brasileira, e essa árvore se não me engano tinha nome estrangeiro e não era brasileira, era daquelas plantas exóticas que faziam o desgosto de Gilberto Freyre.
Eu desisti.
É feio desistir das coisas, principalmente de uma bobagem como essas. É um paradoxo: desistir de escalar o Everest não envergonha ninguém, por difícil que é; desistir de algo bobo é um atestado de incompetência à vigésima nona potência. Ao mesmo tempo, ressalta o atestado de incompetência passado por quem, em plena era do Google, não consegue descobrir o nome de uma árvore comum e vagabunda. Dane-se. Não me importava mais, não depois de tantas semanas sem conseguir descobrir o nome daquela árvore. E por ser bobagem eu me dou o direito de desistir do que quer que seja.
Aí, na fazenda de um amigo eu vi uma árvore dessas, recém-plantada. O coração bateu mais forte, se me permitem a licença poética. Ele havia de saber que caralho era aquilo, uma árvore tão comum.
E ele respondeu com aquela simplicidade que as pessoas que desconhecem a sua grande angústia existencial: “Tá falando do flamboyant aí da frente?”
A delonix regia. O flamboyant. Árvore vagabunda e comum, dessas que você encontra a três por quatro por aí; e no entanto bateu a minha memória. É, flamboyant — você conhece esse nome, eu conheço esse nome, e ele certamente jamais poderia ser dado a qualquer outra árvore. Se a ordem das coisas fosse invertida, nada isso teria acontecido. Se alguém me perguntasse que árvore é o flamboyant eu diria — é aquela árvore de tronco liso, folhinhas esquisitinhas, e que quando floresce é uma belezura.
Descobri que chamam também de pau-rosa. Eu gosto do nome. Pau-rosa é um nome meio erótico — “Vai sentar num pau-rosa” devia ser ofensa corrente neste país de tantas árvores. Mas isso não importa mais para mim. O fato é que eu não quero mais esquecer o nome do flamboyant. E por isso a partir de agora eu só vou chamá-lo de “mulungu, que os outros chamam flamboyant.”

Posted by por AMC on 13:39. Filed under , , . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Feel free to leave a response

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