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"A colonização pela imagem"

por Diego Damasceno

Há uma anedota vinda do projeto Vídeo nas Aldeias que é uma poderosa metáfora sobre a imagem. O projeto, como se sabe, promove a capacitação de indígenas no campo do audiovisual. Em um desses encontros, um antropólogo, munido de câmera, TV e videocassete, mostrava o filme Godzilla para a aldeia.
Acontece que essa comunidade não partilhava do nosso conceito de ficção. E quando o homem explicou que aquelas imagens de seres gigantes eram pura invenção, um dos índios não acreditou e lhe disse: "São vocês que não assumem seus próprios monstros".
À parte a imprecisão da história, e amparado por obras de Platão, Jacques Aumont, Walter Benjamin, Freud, Ismail Xavier e Jean Rouch, considero essa uma das declarações mais esclarecidas que já ouvi sobre a imagem. Primeiro, porque ela vai direto ao seu paradoxo: a imagem é presença e ausência. Ela representa algo que não está lá - e toma seu lugar. E também porque, se a fala do índio se refere ao que se vê, ela recai sobre aquele que vê.
Uma imagem cinematógrafica pode ser igualmente misteriosa na ficção ou no documentário. O que é 2001 - Uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick? O que é Jogo de cena, de Eduardo Coutinho? Puro mistério fascinante. Porém, há mistérios que não fascinam, mas ofendem, agridem. A esses chama-se ignorância, arrogância. Nas boas imagens, há mistérios próprios delas e mistérios que vêm do olhar; mistérios do objeto olhado e do sujeito que olha. Nas images ruins, há violência e incompreensão.
O que é uma imagem ruim? Tivemos exemplo há cerca de duas semanas, com a revelação de fotos dos Mashco-Piro, uma comunidade indígena supostamente isolada na Amazônia. A autora é a fotógrafa Gabriela Galli, da ONG Survival International.
Pergunto-me que direito temos de fotografar um povo que não compartilha nossas ideias, valores, cultura. Afinal, o que pensam os índios sobre câmeras, máquinas fotográficas e telas de TV? O que não se lhes causa ver a si mesmos copiados em uma tela, revista ou site?
Não tenho certeza de que esses índios tenham ideia do que representa uma imagem na sociedade que vai acolhê-las, digo, a nossa. Desconfio que não desconfiem do que podemos dizer deles, fazer deles (metafórica e efetivamente) depois de ver suas imagens. Desconfio que a fotógrafa não saiba.
Quando um artista processa um paparazzi isso é importante (não digo "certo" nem "errado") porque é a oportunidade de pensarmos que a imagem é um direito. E direitos são debatidos, conquistados e estabelecidos com a anuência de coletividades. Não arrancados em nome de não sei que valor supostamente superior (antropologia? arte? políticas públicas para indígenas?).
Uma imagem é um direito porque, entre outras razões, é um dado inescapavelmente incompleto. Essa incompletude será, por um lado, a janela para se produzir arte (cinema de ficção, fotografia, vídeo) e conhecimento (História, cinema documentário). Por outro, ela pode ser a porta para a manipulação negativa (a "pegadinha", alguns reality shows, a reportagem montada) e a desinformação (o noticiário que se apresenta como objetivo, o cinema de entretenimento que mascara interesses e ideologias).
Sociedades nascem e morrem, e encontros entre elas sempre irão ocorrer. Sem querer especular sobre o que acontecerá com a desses índios, acredito que, desde já, contribuímos para o seu extermínio. Não pelo encontro em si (não se sabe se foi o primeiro contato deles com não-índios); mas porque, ao transformarmos elementos da cultura deles (seus artefatos, seus corpos, seus hábitos, seus lugares) em produto da nossa cultura (imagens), produto que renderá lucro e reconhecimento, agimos como colonizadores: tomamo-lhes algo que lhes pertence e passamos adiante, sem pedir permissão.


* jornalista, mestrando em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3

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