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Da série: "Coisas que nos salvam os dias"

Este texto foi publicado a 20 de Junho no semanário Sol:

Fazer a mesma vida gastando metade

por José António Saraiva

As empresas têm de ser aliviadas, porque criam emprego, e os pobres não podem ser mais sobrecarregados; tem de ser, pois, a classe média a pagar a crise.
A classe média vai ter de pagar a principal factura da crise. Não pode ser de outra maneira: as empresas têm de ser apoiadas, porque são elas que geram riqueza e criam emprego, e os mais débeis não podem ser mais sacrificados.
A esquerda está sempre a falar nas grandes fortunas, na banca, nos lucros das grandes empresas – como se aí estivesse a salvação do país. Ora, já não estamos no tempo da revolução soviética. Os patrões já não são aqueles seres ignóbeis e gordos que apareciam nas caricaturas e que só se preocupavam em encher os bolsos e enriquecer à custa do trabalho dos explorados.
Esse tempo, se chegou a existir, passou. Os empresários são quase sempre pessoas que subiram a pulso, que trabalharam no duro, que tiveram a coragem de arriscar e investir, que criam emprego, que sofrem quando se aproxima o dia de pagar aos trabalhadores e aos fornecedores.
É esta gente que cria riqueza – porque o Estado, sendo indispensável, só consome, não produz. Um país precisa de médicos, precisa de juízes, precisa de polícias, precisa de militares – e esta gente toda tem de receber. Mas donde vem o dinheiro? Dos impostos. E onde vai o Estado buscar os impostos? Às empresas e aos particulares.
Significa isto que, quanto mais lucros as empresas tiverem, mais rendimentos terá o Estado. Mas para as empresas terem lucros terão de ser aliviadas de diversos encargos. O que uma empresa paga hoje por um trabalhador, além do que este recebe, é uma enormidade. Para o leitor ter uma ideia, numa empresa como o SOL, por cada empregado que leva para casa 1.390 euros, a empresa tem de desembolsar 2.300. Ora, com este regime, quem é que quer investir e contratar gente?
Além disso, há que aliviar a burocracia e facilitar a vida aos que investem. O grande problema de muitos políticos é nunca terem trabalhado em empresas privadas e não conhecerem a lógica de funcionamento do mercado.
Mas, se as empresas não podem ser mais sobrecarregadas (para poderem crescer e ter capacidade para investir) e os pobres também não, tem de ser a classe média a pagar a crise.
Sucede que na classe média há muita gente que pode gastar metade do dinheiro que hoje gasta e fazer quase a mesma vida.
Na classe média esbanjam-se dinheiro e recursos de uma forma às vezes chocante. Nos restaurantes desperdiça-se comida. Quantas vezes não vemos as travessas voltarem para dentro com quase metade da dose que veio para a mesa? Essa comida vai para o lixo. Por que não se reduzem as doses, diminuindo um pouco os preços? Aproveitar-se-ia melhor a comida e os clientes agradeceriam.
Nos mais pequenos pormenores é possível poupar. Um dia destes, com o café, trouxeram-me um pacote de açúcar branco, outro de açúcar escuro, outro de adoçante e um pau de canela! Eu só usei parte de um dos pacotes de açúcar e tudo o resto foi para o lixo. Ora esse ‘resto’ tinha um valor. Custou dinheiro a produzir – para ir directamente para o lixo.
Ainda no campo da alimentação, mas noutra vertente, há que dizer que em muitos casos não existe motivo para consumir produtos estrangeiros, pois há produtos nacionais equivalentes. Por que se bebe água Vittel, Vichy ou Voss, e não água do Luso, do Vimeiro, das Pedras ou do Castelo? Por que se bebe cerveja Heineken ou Carlsberg em vez de Super Bock ou Sagres? Não há nenhuma razão a não ser esta: por peneiras. Para mostrar aos outros que temos gostos mais requintados e dinheiro para os pagar.
E quem fala das águas e das cervejas fala dos vinhos e dos espumantes. É possível beber um óptimo vinho português cinco vezes mais barato do que um vinho francês. E nas ocasiões festivas por que não optar por um honesto espumante Raposeira ou Cabriz em vez de champanhe Cristal ou Moët & Chandon?
E nos vícios como o tabaco (para já não falar em deixar de fumar, que seria uma enorme vantagem sob todos os aspectos) por que insistir no Marlboro ou no Chesterfield em vez do Português Suave ou do SG?
Finalmente, quando vamos ao supermercado ou à praça, há que ter em mente que sai mais barato e é mais saudável comprar legumes e fruta de origem nacional, e na respectiva época, do que produtos estrangeiros.
Estes princípios aplicam-se também ao vestuário. Se em lugar de um fato Hugo Boss ou Armani comprarmos um Dielmar ou Do Homem, ficaremos igualmente bem servidos e o preço será metade ou um terço. E a mesma regra vale para toda a roupa e para o calçado: se não capricharmos em comprar produtos de ‘marca’, é possível comprar camisas, pólos ou sapatos excelentes a um preço módico.
Neste ponto da conversa, há sempre quem recorde que ‘o barato sai caro’. Mas isso é um mito. Um dia, ainda no tempo do escudo, vi uns sapatos numa montra que me saltaram à vista, entrei na sapataria, experimentei-os, gostei e mandei embrulhar. Quando a empregada disse o preço – 80 contos – eu ia desmaiando. Mas já não tive coragem para voltar atrás. Pois bem: as principais características do calçado são o conforto, a segurança e a durabilidade. Ora esses sapatos – ingleses, marca Church’s – não eram confortáveis, não eram seguros nem se mostraram duráveis, pois resistiram bastante menos do que outros muito mais baratos. E digo que não eram seguros pois escorregavam perigosamente em superfícies muito lisas, como as calçadas de Lisboa, em que as pedras estão polidas pelo desgaste. Por pouco esses luxuosos sapatos não me causaram quedas aparatosas.
Mas há muito mais coisas em que o leitor pode poupar. Por exemplo, não fazer férias no estrangeiro, evitando ainda por cima aqueles horríveis tempos mortos nos aeroportos e o risco da perda de bagagens. Faça férias cá dentro. Haverá coisa melhor e mais cómoda do que entrar no carro em frente de casa e sair em frente da porta do hotel ou do apartamento onde vamos passar férias?
A propósito de carro, por que não escolher sempre um modelo abaixo daquele que ‘normalmente’ iríamos comprar. Em vez de um Mercedes E, um Mercedes C; em vez de um Audi 6, um Audi 4; e assim sucessivamente. E só falo de carros caros pois é onde se pode poupar mais dinheiro.
Se formos para o hotel, por que não experimentar um de três ou quatro estrelas em vez de escolher às cegas um de cinco?
E, se teimarmos em ir de avião, não custará nada viajar em turística em vez de 1.ª ou Executiva, pelo menos nos voos de duração inferior a três horas. Chega-se ao mesmo tempo e paga-se metade.
As novas tecnologias são outro excelente terreno para poupar. Se não capricharmos em ter sempre um computador, um telemóvel, um iPhone ou um iPad de última geração e nos contentarmos com uns modelos ‘ultrapassados’, também pagaremos muitíssimo menos e não ficaremos pior servidos. Também aqui é uma questão de ostentação. Quantas vezes o modelo ‘ultrapassado’ não é tão ou mais eficaz do que o último grito?
E por falar em telemóveis, quantas chamadas fazemos por dia que são perfeitamente desnecessárias? Talvez 90%. E, pensando nos computadores, não poderemos poupar imenso no material de escritório, deixando de fazer prints por tudo e por nada? Basta que, quando vamos dar uma ordem de print, pensemos se ele é mesmo necessário.
Outra norma simples é evitar ligar o ar condicionado. Até porque é prejudicial à saúde, sendo responsável por muitas gripes e outras doenças.
Quando se passa do material de escritório para o mobiliário, é bom pensar que existe um abismo entre comprar nacional ou estrangeiro. E o mesmo sucede quando se trata de equipar uma casa. É indispensável procurar materiais portugueses – azulejos, mosaicos, pavimentos, papéis de parede, torneiras, toalheiros, louças, etc. –, até porque os há de excelente qualidade. Às vezes pensamos que os estrangeiros são melhores por serem mais caros, mas é um engano: o aumento do preço tem apenas que ver com o facto de serem importados.
E já não falo nos luxos e extravagâncias – os perfumes, cremes, desodorizantes, espumas de barbear, after shaves, sais de banho, lacas, etc., etc. – que enchem as prateleiras das nossas casas de banho e que podem ser reduzidos a metade ou um terço, ou substituídos por outros menos dispendiosos.
A propósito, os detergentes e os produtos de limpeza também são uma rubrica onde se pode poupar muitíssimo, pois as diferenças de preço são enormes entre os produtos de marca e os produtos brancos, e a qualidade é semelhante.
Finalmente, é possível seguir uma regra simples: em cada cinco visitas ao cabeleireiro, ou à esteticista, ou à depilação, ou à manicura, ou à massagista, reduzir uma. Não custa nada e representa uma poupança de 20% nessas despesas.
Podia continuar, mas não vale a pena: o leitor já percebeu que pode gastar muito menos do que gasta sem ter de mudar de vida. Basta apenas um pouco de disciplina. Basta ‘racionalizar as despesas’. Eu já fiz a prova e sei do que falo.
Até lhe digo: sentir-se-á melhor. Porque, ao não desperdiçar, ao reduzir o consumo, sabe que está a contribuir, por exemplo, para não estragar mais o planeta. E para não aumentar mais a dívida do país, visto que muito do que consumimos é importado. Simultaneamente, ao preferirmos produtos portugueses, estamos a estimular a produção nacional, a criar emprego e a reduzir a dependência do país relativamente ao exterior.
Como vê, a crise pode contribuir para vivermos melhor – com menos. Não é necessariamente um problema – é uma grande oportunidade para mudarmos alguns hábitos.

A resposta, sempre atempada, no blog Antologia do Esquecimento:

Classe Média
por hmbf

Camarada Van Zeller, apesar dos meus 485€ de base, estou numa de classe média à la Saraiva. Esta opção acarreta uma clara intenção filantrópica. Quero ajudar a pagar a factura da crise. A minha postura, neste momento, é a do guerreiro samurai contra ventos e tempestades. Sangue, suor e lágrimas, caro Van Zeller. É isso que sinto nos meus concidadãos, e é esse sentimento que pretendo trazer ao meu coração. Se for para pagar a factura da crise, até um patrão gordo e ignóbil eu aguento. Que remédio! Aceite-me ele a mim, explorado ou não. O que importa é ajudar o país, pois mais importante que a felicidade dos indivíduos é a alegria da nação. Não só deixarei de viajar em executiva como deixarei de viajar "tout court", que é uma forma de viajar muito mais económica e igualmente espiritual. Tal como o bom mestre Saraiva, também eu julgo que os patrões de hoje «são quase sempre pessoas que subiram a pulso, que trabalharam no duro, que tiveram a coragem de arriscar e investir, que criam emprego, que sofrem quando se aproxima o dia de pagar aos trabalhadores e aos fornecedores». Não sei se o Rui Pedro Soares, o Jorge Coelho, o Armando Vara, o Valentim Loureiro, a Fátima Felgueiras, o Dias Loureiro, o Ângelo Correia, o Santana, o Pereira Coelho, o próprio Saraiva, o Abel Pinheiro, o sucateiro, o Diogo Vaz Guedes, o Ferreira do Amaral, o Pina Moura, o Júdice das advocacias, o Teixeira Pinto, o Oliveira do BPN, enfim, todo esse rol de goodfellas, são patrões ou não, mas encaixam no perfil como o parafuso na porca. É tudo gente que cria riqueza, diria mesmo gente que gera a riqueza que serve para pagar aos inúteis energúmenos dos juízes, polícias e militares. De resto, estou convencido de que um governo só poderá ser levado a sério quando começar a pensar a sério na privatização da justiça. Entregue-se a justiça a quem gera riqueza, ilibem-se os bons criminosos, os bons vigaristas, os bons aldrabões em prol da saúde económica da nação. Por mim, estou preparado para aguentar todos os esforços. Se for preciso, torturem-me. O que eu quero, o que eu desejo, aquilo porque anseio é apenas uma só coisa: a estabilidade dos mercados, a pacificação da especulação financeira, a boa saúde da economia. Que se esfolem, torturem, matem, que se escravizem, que trabalhe até ao último pingo de suor essa canalha, esse gado a que alguns, por clara ingenuidade, insistem em classificar de povo. Essa gente mais não é do que o vírus da nação enquanto a frugalidade não os tornar na aspirina dos mercados. Já eu, no meu palanque de classe média, estou disposto a não desperdiçar nem mais uma espinha quando for comer a restaurantes, ainda que já muito raramente o faça. O bom Saraiva diz tudo quando revela a tragédia dos números: «numa empresa como o SOL, por cada empregado que leva para casa 1.390 euros, a empresa tem de desembolsar 2.300». A pergunta é simples: sendo assim, como sobrevive o Sol? Eis a resposta: tem ao volante um Saraiva que ao beber café não desperdiça o açúcar branco, o açúcar escuro, o adoçante e o pau de canela. Mistura tudo numa perfeita simbiose de cafeína, emborca a mistela e arrota para o ar a prosa da semana. Só gostávamos de saber onde vai o bom homem beber café? E não necessariamente para aí desperdiçarmos parte dos nossos 485€ de base, mas para sacar do lixo, mais que não fosse, o pauzito de canela. Mas eu vou mais longe, não me limito a substituir a água Vittel pela do Luso. Recorro directamente a boa água del Cano. Entre Heineken e Sagres, há sempre uma Cergal a sorrir para mim. Quanto a vinhos, o Chandon do Cartaxo é a mais justa das opções. Em nome da crise e das suas facturas. Tabaquinho, só de enrolar. Ou barba de milho. Fatos não visto, mas já substituí toda a indumentária. Limito-me à farda fornecida pelo bom patrão. Aos domingos, lá ponho uma camisita comprada nos ciganos e a boa ganga do mercado de Santana. Tenho um par de sapatos para o ano inteiro. Compro-os sempre no Inverno. Chegados ao verão, têm buracos. Mas não importa, faz de conta que é ar condicionado. Os pés respiram melhor. Há muito que optei por férias cá dentro. Tão dentro, tão dentro, tão dentro, que raramente saio de casa. Os aeroportos são, sem dúvida, um risco desnecessário e um incómodo evitável. Sobretudo para quem lhes pode sentir o cheiro. Nunca tive, nem sei o que é, um Mercedes E, um Mercedes C, Audi 6 ou um Audi 4, mas desde 1999 que tenho o mesmo e bom velho Ibiza. Não me incomodam os seus soluços nem a falta de ar condicionado. É para isso que servem os vidros e, em nome da crise, não há cá calores que justifiquem luxos. Aos hotéis, prefiro a tenda de campismo. Enfim, sigo, na linha do bom Saraiva, os meus próprios princípios de frugalidade. Diga-se também que só uma vez na vida comprei o Sol. Seria um desperdício inconcebível gastar dinheiro com as merdas que o Saraiva escreve.

Com a devida vénia ao Sérgio Lavos.

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