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"A despedida de um grande líder: Raimundo Luis Yawanawa"

por Felipe Milanez*


A noite chegou triste na Amazônia nessa madrugada. Estava uma noite clara, com a lua cheia impondo-se entre as nuvens, dando mais volume para a escuridão. Olhei pro céu e não vi estrelas - deviam estar reunidas, pensei. Era, provavelmente, o mesmo céu que deveria acompanhar o rio Amazonas em direção ao Oeste, no sentido inverso em que escorrem suas águas, até aproximar-se da cordilheira dos Andes. Um mesmo plano, mesmo brilho, e mesma tristeza. A tristeza que eu sentia, no entanto, não parecia estar lá, nem na floresta que me cercava, onde vivem os espíritos. Estes, imagino, estavam celebrando a chegada de uma pessoa muito especial, alguém que desde pequeno aprendeu a frequentar o universo espiritual como poucos: Raimundo Luis Yawanawa. Seu filho, Joaquim Tashka, me ligou para dizer: "estamos muito triste, papai está fazendo a passagem".
Raimundo lutava contra um câncer fazia alguns anos. Lutou bravamente, até conseguir receber todos seus filhos para despedir-se, em Tarauacá, no Acre, cidade próxima da Terra Indígena Rio Gregório, onde vive.
Filho de Antonio Luis, o yawanawa que primeiro teria pacificado os brancos que invadiam seu território, Raimundo conduziu seu povo durante o período violento da ditadura militar no Acre, da ocupação escravagista dos seringais, e do drama da opressão que viviam das missões cristãs que proibiam que os rituais fossem praticados.
Era um artista que reconstruiu a arte antiga de seu povo. Através de visões em rituais de uni (ayahuasca), ele soube interpretar os mitos e cantos antigos para fazer renascer a arte de seu povo. Certa vez, quando visitei sua aldeia, ele me mostrou o ateliê onde esculpia lanças, tecia lindos cocares, e meditava sobre a existência do povo yawanawa em um mundo hostil que os cercava.
Raimundo liderou seu povo a se impor frente a esta sociedade que queria envolve-los, exterminando a cultura e transformando os yawanawa em simples mão-de-obra escrava, saqueando o território. Foi quem preparou seu sobrinho Biraci Brasil que, quando jovem, junto de seus primos Nani e Sales (o mais velho dos 19 filhos de Raimundo), a ir para Rio Branco, conhecer a sociedade branca que enviava os seringalistas para oprimirem. Com a luta destes jovens, expulsaram os patrões, retomaram o território.
Raimunda Putani e Kátia Hushahu, duas filhas de Raimundo, foram as primeiras pajés do Acre. Quebraram regras tradicionais do povo, reconquistando antigos ensinamentos guardados por Raimundo e os pajés Tatá e Yawa, e se impuseram frente ao domínio machista da sociedade ocidental para reescrever a relação com o mundo espiritual.
Tashka, o filho que Raimundo preparou para liderar seu povo, é fluente em inglês, português, e fala também espanhol e yawanawa. E um dos lideres indígenas mais influentes do Brasil no exterior. Aprendeu com seu pai a defender, intransigentemente, seu povo.
Os yawanawa estão de luto. "Mas nossa luta continua", diz Bira. Tashka, há alguns anos, já temia pela possível perda de seu pai quando foi diagnosticada a doença. Passou a filmar os encontros com seu pai, a luta espiritual que travavam, junto de Tatá, para ajuda-lo a enfrentar os males. Em seu blog , descrevia sua luta e seu carinho: "Tata e eu estamos numa jornada espiritual, um trabalho forte dedicado a recuperação do meu pai", escreveu em um certo momento.
Jovem líder político influente, fala inglês, espanhol, português e yawanawa, Tashka estava sendo preparado por Raimundo para liderar os desafios que seu povo enfrenta para manter-se unido e seguir sempre yawanawa.
No inicio do ano, Tashka e Raimundo fizeram uma jornada espiritual. "Passei o final de semana meditando e fazendo Uni com meu pai e o Macilvo. Melhor, não sei fazer Uni. Macilvo e eu estávamos aprendendo com meu pai como fazer Uni. Meu pai já estava sentindo melhor das dores que vinha sentindo. Para mim foi um previlégio ter meu pai me ensinando como colher, bater, tirar o cipó e cozinhar o Uni, retirado do quintal da minha casa. O cipó foi o Tucuni, uma qualidade de cipó muito forte e respeitada pelos Yawanawa, o Tucuni é cheio de nó, segundo nossos ancestrais ele nasceu a partir da junta do braço do grande chefe, que depois de sua morte, surgiram todas as qualidade de cipó. E a chacrona, é o Kene Kawa, a rainha das folhas, que trouxe do Buriti, onde os antigos pajés Yawanawá tomavam. O Kene Kawa traz visões muito forte e iluma nossa jornada espiritual".
Raimundo era a biblioteca dos yawanawa. No processo de demarcação da terra, era através da memória de Raimundo que a Funai conseguiu reconstruir a história yawanawa. "Nós sempre vivemos nesse território, todos os nossos ancestrais", ele dizia.
Raimundo era um arquivo de histórias, me explicou uma vez José Carlos Meirelles, um dos maiores sertanistas do Acre. Quando ia na aldeia, ele gostava de "sentar na rede, tomar uni e ficar ouvindo histórias do seu Raimundo".
Um grande contador de histórias é um grande conhecedor. A força da memória oral dos grandes contadores de histórias pode surpreender um ocidental desavisado. Eu, pensei comigo numa roda de conversas com Raimundo, não consigo lembrar nomes de parentes três gerações antes da minha. Bisavó, tataravó, seria preciso perguntar a alguém. Raimundo poderia divagar sobre gerações e gerações, contar detalhes de batalhas que ocorreram a 200, 300 anos, nomeando uma porção de parentes que, em linha direta, poderia ultrapassar 10 gerações. Meu bloco de notas ou meu gravador, onde eu tentava esquematizar um pouco da sabedoria de Raimundo, pareciam joguinhos infantis.
Um "homem de Conhecimento", shinaiá, Raimundo transitava entre o universo espiritual e a realidade mundana. Deixou quase 20 filhos, dezenas de netos, e o povo yawanawa forte, unido. Yawa, na língua pano, quer dizer porco queixada. Nawa, é povo. É o povo que vive junto, como uma manada de porco queixada.
O povo Yawanawa perdeu uma de suas maiores lideranças, política e espiritual. Os índios da Amazônia perderam um de seus mais íntegros representantes. O Brasil, mais uma vez, assistiu a passagem de um grande brasileiro, que não teve aqui o reconhecimento que o pais mereceria lhe conceder. E fica um país mais pobre, com menos brilho, com menos conhecimento de si mesmo.
Raimundo, junto de outros shinaiá, agora repousa no mundo espiritual.

* jornalista e advogado, mestre em ciência política pela Universidade de Toulouse, França. Foi editor da revista Brasil Indígena, da Funai, e da revista National Geographic Brasil, trabalhos nos quais se especializou em admirar e respeitar o Brasil profundo e multiétnico.

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