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«O parecer do Aldo Rebelo sobre o Código Florestal: uma declaração de guerra»

por Luciana Montenegro Valente

O Prof. Ribamar Bessa já escreveu em sua crônica “O carrasco da floresta”, a queixa que o Curupira (jurista Curupira Ramos) registrou: “O deputado Aldo Rebelo me agrediu, bateu no meu corpo com um porrete, rasgou minha camisa, tentou me eliminar a mando da senadora Kátia Abreu! Há testemunhas. Estou registrando a queixa. Ele vai pagar caro por essa agressão, vai perder a eleição".
Ninguém melhor para fazer essa queixa, do que ele, o Curupira, que afinal representa todos nós, povos da floresta, vivamos dentro dela ou viva ela dentro da gente (parafraseando Anibal Beça, em relação a Manaus).
Nós, representados pelo Curupira, somos na visão canhestra do Deputado, primitivos, insalubres, infelizes, dominados pelo meio, lutamos incessamente CONTRA a floresta e a água. Vocês duvidam? Então leiam o que disse o Deputado sobre a gente: “índios e caboclos, depois de séculos de luta contra o meio inóspito, ainda ali vivem como viviam seus antepassados há centenas ou milhares de anos (…) mergulhados no isolamento, completamente dominados pelas forças da natureza, perambulando nus ou seminus, abrigados em choças insalubres, infestadas de insetos e fumaça, lutando em condições absolutamente desiguais contra o meio hostil, que não lhes permite ir além da condições mais rústicas e primitivas de vida de seus ancestrais”.
Para mim, que sou sim urbanóide nascida em Manaus pós Zona Franca, mas que também sou neta de seringueiros do Acre e de soldados da borracha vindos do Nordeste para a Amazônia, chamar minha casa de “choça insalubre infestada de insetos e fumaça” é uma declaração de guerra!
E o Deputado (Claude Lévy-Strauss se revirando no túmulo) continuou, citando Josué de Castro: “... nada existe de mais fantasioso do que a suposta harmonia entre o homem e a natureza na região amazônica. Se, ao contrário de outras regiões do País, grande parte da região amazônica conserva-se ainda hoje tal qual foi encontrada pelos colonizadores portugueses há cinco séculos, isso não se deve à tal harmonia que a civilização não conseguir destruir, mas exatamente à hostilidade do meio à vida humana e ao desenvolvimento (…) dentro da grandeza impenetrável do meio geográfico, vive este punhado de gente esmagado pelas forças da natureza, sem que possa reagir contra os obstáculos opressores do meio (...)”
Não caros leitores, vocês não estão lendo uma carta dos invasores ao Rei de Portugal, quando do “Descobrimento” (?) do Brasil, e sim um documento de um parlamentar brasileiro escrito no ano de 2010! Um documento que fala em conquista, colonização, “força criadora” da “civilização”. Que civilização é essa? Seria a “raça ariana” dos ruralistas? É um documento, eu diria, quase nazista (o quase é bondade minha), contra o homem e a floresta.
Aliás, para o Deputado, homem e floresta não convivem e sim sobrevivem em uma luta tenaz daquele contra esta e contra a água, uma luta “contra o excesso de vitalidade da floresta e contra a desordenada abundância da água dos seus rios. Água e floresta que parecem ter feito um pacto da natureza ecológica, para se apoderarem de todos os domínios da região. O homem tem que lutar de maneira constante contra esta floresta que superocupou todo o solo descoberto e que oprime e asfixia toda a fauna terrestre, inclusive o homem, sob o peso opressor de suas sombras densas, das densas copas verdes de seus milhares de espécimes vegetais, do denso bafo de sua transpiração. Luta contra a água dos rios que transformam com violência, contra a água das chuvas intermináveis, contra o vapor d´água da atmosfera, que dá mofo e corrompe os víveres. Contra a água estagnada das lagoas, dos igapós e dos igarapés. Contra a correnteza. Contra a pororoca. Enfim, contra todos os exageros e desmandos da água (...)”
Que absurdo! Além de nunca ter conhecido os índios e caboclos da Amazônia, o Deputado também nunca tomou banho num rio, num igarapé geladinho, nunca caminhou pela floresta, nunca conversou com um mateiro, um pajé, um cacique, um catador de castanha, um seringueiro, um habitante de Manaus ou de outra cidade qualquer do interior – mas não aqueles que vieram para plantar soja e criar gado, e sim aqueles que conhecem, por exemplo, quando vai chover, quando a cobra grande vai aparecer, qual a folha que dá o remédio para qual mal, etc.
Aqui ninguém vive lutando contra a floresta e contra a água não, Deputado! Aqui ninguém precisa “abrir brechas nesses cerrados batalhões de árvores inexpugnáveis” para viver, como o senhor supõe. Pegue um barco recreio em Manaus e vá até Mamirauá, perto de Tefé, ver como vivem os povos da floresta e da água!
Fora esses impropérios verberados contra todos os Amazônidas, o Deputado repete a cantilena da Ditadura Militar (e olha que ele é do PCdoB!) de “integrar para não entregar”, da teoria da conspiração acerca da ameaça estrangeira sobre a Amazônia, que para ele hoje é veiculada por meio das ONG´s e (quem diria!) do Ministério Público, que são, na visão do Deputado, “marionetes” dos interesses dos governos internacionais, do Al Gore, do James Cameron (diretor de Avatar) e outros “portadores das bandeiras ecológicas dos países ricos”.
O parecer do Deputado é um libelo à agricultura (até aí, nada contra, esta é uma atividade necessária e que se coaduna muito bem com a existência da floresta), ao agronegócio (esta sim, atividade predatória, que visa somente o lucro, explora o ser humano com trabalho escravo e depreda o meio ambiente, sonega impostos, etc) e à pecuária.
Alías, nessa defesa do “boi”, que na visão do Deputado “foi apontado como o inimigo número um” do meio ambiente e recebeu “sentença condenatória”, ele chega a escrever que: “... o boi é o animal de estimação preferido de muitos brasileiros, e ocuparia o lugar do cão e do gato, fosse mais simples alimentá-lo e acomodá-lo no reduzido espaço das moradias urbanas”.
O problema é que o documento não é apenas “dedicado aos agricultores brasileiros” (até aí, nada contra), mas foi também escrito pela advogada da bancada ruralista no Congresso Nacional! Como se presta um congressista brasileiro a tamanho escândalo ético?!
O problema é que o documento é nazista, sim (e aí já vou esquecendo o quase) quando prega, desavergonhadamente, a substituição da cultura amazônica pela da “raça ariana” dos ruralistas. Prega isso, expressamente, ao dizer que para que a Amazônia perfaça sua “vocação” para ser “celeiro do mundo”, “basta que a indústria extrativista seja substituída pela indústria agrícola, tornando o seringueiro lavrador, o caucheiro, pastor”.
Alto lá, senhor Deputado, mais respeito! Isso eu não aceito! Que tal, cada coisa no seu lugar? O lavrador nos campos, o pastor nas pastagens e o extrativista na floresta? Ou será que é o senhor que está sendo o “portador das bandeiras (econômicas) dos países ricos”, ao propor que se mate a galinha para roubar seus ovos de ouro?!
A biodiversidade brasileira é a galinha dos ovos de ouro, se a matarmos logo e comermos de uma vez um enorme omelete dourado, o que vai sobrar para o nosso país no futuro? Isso minha filha de 11 anos não aceita! O senhor, e seu punhado de gente do agronegócio que vivem em mansões erguidas sobre as nascentes dos riachos do Cerrado brasileiro, não podem tirar da geração dela o direito a um mundo com as mesmas ou melhores condições de habitabilidade. O senhor, e seu punhado de ruralistas desmatadores, não podem roubar a Amazônia dela. Ela nasceu aqui, ela toma banho de rio, de igarapé e anda na floresta. Ela nunca lutou contra essa floresta e essa água!
O que o senhor propõe é o DES-envolvimento e não o desenvolvimento. O senhor propõe “a adequação dos lavrados amazônicos à pecuária”, citando Raimundo Morais, para quem “o que transformará a Amazônia de terra inculta em terra prodigiosa, de tesouro encantado em tesouro real, (…) será a indústria pastoril”
Terra inculta? Tesouro encantado? O senhor conhece a Amazônia, Deputado? Pelo jeito, não a que eu conheco! O senhor diz que aqui não existe “civilização”, citando o discurso “Ocupação dos Espaços Vazios” de Getúlio Vargas, para quem: “O nomadismo do seringueiro e a instabilidade econômica dos povoados ribeirinhos deve dar lugar a núcleos de cultura agrária, onde o colono nacional recebendo gratuitamente a terra desbravada, saneada e loteada, se fixe e estabeleça a família com saúde e conforto. Nada nos deterá nesta arrancada, que é, no século XX, a mais alta tarefa do homem civilizado: conquistar e dominar os vales das grandes torrentes equatoriais, transformando sua força cega e sua fertilidade extraordinária em energia disciplinada. A Amazônia, sob o impulso fecundo da nossa vontade e do nosso trabalho, deixará de ser, afinal, um simples capítulo da história da Terra, e, equiparando-se aos outros grandes rios, tornar-se-á um capítulo da história da civilização”.
Logo o senhor, um Deputado comunista, repetindo e aprovando um discurso fascista da década de 1930! A História tem suas ironias, afinal... Mas a ironia mais fina dessa estória toda, é que a Amazônia não é uma terra inculta e incivilizada, nem nunca o foi, e nós não seremos colonizados e dominados pelo agronegócio para nos tornamos, aí sim, uma terra incivilizada, violenta, des-envolvida, desaculturada e desflorestada.
Não, nós vamos resistir! Com os nosso índios, caboclos, ribeirinhos, e urbanóides. Que venha a motosserra, encontrará aqui um povo da floresta verdadeiro! Para mim, contando com a proteção do Curupira, a Grande Guerra começou!!!



* Luciana Montenegro Valente é advogada, especialista em Direito Ambiental pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Unb – Universidade de Brasília, mestre em Direito Ambiental pela Pace University, de Nova Iorque, e servidora do Ministério Público Federal. Escreve para a "Coluna do Meio", do Blog do Bentes, às segundas-feiras, e para o Blog do NUMAS – Núcleo Marina Silva, de Manaus, às terças-feiras.

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