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Capote alentejano: das planícies portuguesas para as catwalk do mundo





Uma crónica deliciosa sobre um ícone que é parte ilustre das 'Coisas Portuguesas, Concerteza!':

A frase passa por nós sem eriçar cabelo porque há uma fonética que é de alguma forma familiar: "Capote alentejano é moda para o frio de Nova Iorque." Só que este capote não é o Truman escritor, nem este frio o do sangue nas mãos dos dois parolos que brutamente assassinaram toda a família do lavrador do Kansas. Não. Temos que reabsorver o significado das palavras para perceber o estranho da coisa. O capote alentejano - sim, o casacão até aos pés, feito de várias camadas de pedaços de flanela pesadas e pele de raposa na gola - está a fazer furor na Grande Maçã. Li em vários jornais e vi referências em peças televisivas, e esperei que me mostrassem um pimp do Harlem ou uma Vanderbilt a ir tomar o pequeno-almoço no Tiffany's com cãezinhos saltitantes agasalhados em capotes miniaturas iguais aos da dona. Mas não. Inevitavelmente, os "apontamentos" de reportagem remeteram para a Praça do Giraldo, a Times Square de Évora, onde os locais gabaram os seus capotes resgatados à naftalina. "Isto é do melhor contra o frio. Fui buscar este ao baú que era do tio do meu pai..." Um fabricante autóctone, satisfeito, declarou: "Estão na moda, tenho vendido para todo o lado, até para Nova Iorque." Até para Nova Iorque... Terá provavelmente sido este soundbyte, pejado de confiança socratista, que transformou uma intenção de expansão de negócio além-mar na imprensa em efectiva tomada de posição no difícil mercado de moda nova-iorquino.

Eu, que também sou autóctone, fiquei banzado com esta recuperação do capote alentejano. Tivesse um baú e também teria ido buscar o meu. Até porque há duas semanas que somos ameaçados com esta perplexidade no mês de Janeiro: está frio. Dizem mesmo que estamos a ser vítimas de uma vaga de frio polar. Está tanto, mas tanto frio, de forma tão inesperada e avassaladora que o Expresso foi obrigado a fazer um antitítulo para, desculpem a chalaça, pôr água na fervura: "As temperaturas são normais para a época."

Tendo em conta que grande parte de nós passa a vida dentro de ambientes fechados e não se dedica à pastorícia, sendo que quando chega ao escritório entra num bafo contaminado e tem de se pôr em mangas de camisa, quase que sou tentado a pensar que esta paranóia com o frio foi lançada pelo lóbi da moda do capote da Praça do Giraldo\/2010. Mas não vou tão longe.

O capote merece este momento de glória. Há que experimentá-lo para perceber a dignitas que os quilos dele fazem transpirar. Basta ver D. Duarte com um, a sorrir em pose, que até parece ter mais terras que o Joe Berardo. Assim que se veste um capote, exige-se que se permaneça de pé - ou encostado ao cajado -, estático. Alentejano. Ao sentar-se com ele vestido, a estrutura abre-se e desmonta-se tristemente como uma raia morta e desasada. Quando os modismos repescam estas tradições tendem a abastardá-las. Mas estamos a falar do velho Alentejo e o sistema de castas estendia-se ao capote. Os cinzentos-escuros com gola de raposa eram dos latifundiários e os castanhos com gola de lã de borrego para os rurais e pastores (os verdes é coisa recente de espanhóis e caçadores chiques). Depois veio o 25 de Abril e democratizou-se o capote: desapareceu. Até que, subitamente, reapareceu em Manhattan, via Praça do Giraldo.

E há as samarras, a versão mais curta, algumas delas viradas do avesso, com o pêlo de lã para fora e imortalizadas na I Guerra Mundial, quando alguns alentejanos mais precavidos as levaram consigo no Corpo Expedicionário Português para o gelo e lama das trincheiras da Flandres. Uma velha história que sobreviveu foi a da sentinela que de samarra de pele de borrego sobre a farda provocava uns "bééééés" gozões do lado dos alemães e ficou baptizado de "lanzudo", expressão que ainda hoje se encontra no calão alentejano. Este pode ser um "mito rural", mas é como o "mito urbano" do capote alentejano que está a fazer furor em Nova Iorque.

Momento de glória
A única fábrica que faz capotes no sul do país, a José Alpedrinha Lda., está na zona de Elvas, e este ano garante ter expedido para "Paris, Londres e América". Mas na zona de Lisboa também apareceram nas montras capotes tradicionais cinzentos, castanhos e verdes, sempre com pele de raposa, que venderam muito mais que a versão curta (a samarra). O modelo feito pela Nfardas, que tem um toque clássico com um forro em xadrez escocês, recuperado de um croqui com "40 anos na casa", custa menos de 300 euros.

Luis Pedro Nunes, Um capote alentejano em Manhattan


E os dois sites para servir de acompanhamento:

www.nfardas.pt
www.feitoria.com.pt
 

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